Capítulo 35

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Renan estava absorto em seus pensamentos, enquanto se preparava para a aula de educação física no vestiário da escola, embora Rubão tenha antecipado aos alunos que aliviaria naquele dia, graças ao título conquistado na véspera pela equipe.

Um zumbido distante o arrastava de volta à realidade. A voz de alguém familiar.

— Mas se não é o nosso Salvador aqui.

— Nem da Bahia eu sou.

Arturo riu, diante da ironia do Renan, logo instigando os demais colegas ali presentes:

— Esse cara é um piadista. Não é mesmo, crewzada?

E todos bradaram, em uníssono:

— Sim, senhor capitão!

Naquele instante, Hugo chegava ao vestiário para anunciar:

— Ru-rubão pedi-diu pra gen-gente come-meçar aque-quecendo em cam-campo.

— Neste calor? Sem condições. Passamos a semana inteira na dieta louca dele. Quero é me esbaldar no almoço hoje lá no refeitório. "O Manjar dos Campeões"

— Ainda mais com os louros da vitória refogando o feijão — zombeteou Ramón, arrancando a gargalhada de parte dos colegas.

Hugo esboçou um protesto, já antevendo as intenções do amigo de infância. Arturo, contudo, não parecia disposto a ceder nas provocações. Principalmente perante seu alvo predileto das últimas semanas.

— Falando em comida, soube que a xexelentinha ontem fugiu de você lá no Nautilus', Renan. Que ingratidão dessa gente, né?

Mesmo percebendo que o desafeto ignorava seus acintes, o capitão do time continuava na tarefa de desestabilizá-lo.

— Que isso, goleirão? Não tem mais o que se preocupar. Já dei um jeito na situação. Com a ajuda de meus parceiros do PLE.

Ao notar Hugo reagindo àquela revelação do amigo com um menear reprovador de cabeça, Renan logo interpelou o colega:

— Hugo, o que significa esse tal de "PLE"?

Arturo antecipou-se, em tom inabalável:

— Perda de tempo. Esse aí não tá sabendo de nada.

— O que você fez? — Renan já temia o pior.

— Tá bem, calouro. Significa "Plano de Limpeza de Excelso". São uns seguranças que atuam nas redondezas, "higienizando"...

Antes que Arturo terminasse a sentença, o punho cerrado de Renan chocou-se ao rosto do valentão, que tombou no piso frio com o impacto.

Ao ver o líder do grupo fora de combate, um dos seus asseclas desferiu um soco na direção de Renan, que desviou do golpe no último instante e contra-atacou com um potente chute nas partes íntimas do rapaz, que, ajoelhado, agonizava de dor.

— Você me arrancou um dente! — exclamava Arturo no outro lado do vestiário, ao cuspir sangue.

Instintivamente, Hugo segurou Renan por trás:

— Ca-calma, cara.

Renan não deu chances ao colega para se explicar e, ignorando a diferença de porte entre os dois, lhe aplicou uma cotovelada no abdômen, levando o brutamontes também ao chão, onde se contorceu de dores.

Contendo, com uma das mãos, o sangue que saía da boca, Arturo interveio, em tom de ameaça:

— Ninguém mexe com a boneca magricela. Ela é toda minha. Para finalizar: se o que aconteceu sair daqui e chegar aos ouvidos da Dona Pilares, o dedo-duro se verá pessoalmente comigo.

— Que algazarra é essa no meu vestiário? — Rubão vociferou, ao se deparar com alguns de seus alunos estirados no chão. — Todos para a diretoria...já!

Os atletas da equipe masculina do Sideral seguiam cabisbaixos em procissão, até a sala de direção do colégio, sendo acompanhados de perto pelo treinador.

Chegando lá, os rapazes sentaram-se ao longo das carteiras que rodeavam a recepção.

— Que dia agitado esse... — resmungou Dona Camélia em seu assento, ao observar a cena por cima dos óculos que lhe escorregavam pelo rosto.

Após autorizar a entrada do professor de educação física, Dona Pilares anunciou a sua secretária que intimasse cada rapaz a comparecer em sua sala.

A cada instante em que um dos alunos saía do recinto para dar vez ao seguinte, a tensão aumentava entre os presentes.

Nenhum dos que haviam conversado com a diretora, confidenciava qualquer coisa aos colegas. Ao invés disto, eles eram inquiridos a aguardarem do lado de fora da recepção.

Até que só restaram Arturo e Renan. O primeiro foi instado a ingressar na sala da direção e fazia questão de exibir um ar triunfante para o outro.

Minutos depois e Arturo se retirava do recinto com cara de sonso, deixando um filete de sangue escorrer pela boca.

— Dona Camélia, peça ao Senhor Comparato entrar e encaminhe o senhor Venceslau à enfermaria.

Após cerrar a porta, Renan se acomodou em dos assentos defronte a mesa da diretora.

— Pois bem, meu rapaz. Vamos direto ao ponto. Já sei do ocorrido lá no vestiário masculino. Aliás, sabia antes mesmo de vocês virem para cá.

— Câmera escondida?

A senhora de meia idade sorriu ante o disparate do jovem.

— Do jeito que alguns de vocês me pintam, não duvido que acreditem nesta bobagem. Na realidade, um de seus colegas filmou a briga na surdina e jogou nas redes sociais. Assisti ao vídeo um pouco antes de você e seus amigos chegarem.

— "Amigos"? Sei... Mas se a senhora já sabia das circunstâncias da minha briga com aqueles trogloditas, por que então todo o teatrinho com os demais alunos, agora há pouco?

A investida de Renan parecia não ter surtido qualquer efeito sobre sua interlocutora. Afinal, Solange Pilares era calejada em lidar com adolescentes problemáticos, pelos anos de experiência que acumulava desde o magistério.

— Um velho mestre certa vez me disse: "Triste é aquele que se precipita em suas decisões" — ela filosofava, em tom suave, antes de prosseguir. — Por isso, quis apurar todas as versões do fato, antes de estabelecer meu veredito.

Naquele instante, Renan titubeou, ao lembrar que a diretora fazia parte da lista de suspeitos no caso Rasputin. Ao menos para seus parceiros de investigação.

Dona Pilares aproveitou-se da hesitação e voltou a discursar:

— Pois bem, sei também do que se sucedeu ontem à noite lá no Nautilus'. Foi esse o pretexto do seu desentendimento com o Arturo, não é mesmo?

— Pelo visto, a senhora já sabe da resposta.

Passando a assumir uma fisionomia mais afetuosa junto ao rapaz, a diretora confidenciou:

— Um de seus colegas me narrou os detalhes desta briga, inclusive o que a motivou de fato. A atitude de se revoltar diante do descaso a uma criança desassistida foi algo muito nobre de sua parte. No entanto, a reação que teve a essa injustiça foi, digamos, impulsiva e equivocada.

— Claro! Melhor fazer vista grossa...Como, aliás, todos vocês fazem. Não é mesmo, Dona Pilares? — Renan demonstrava indícios de que sua impaciência havia chegado no limite, perante mais um conselho da anciã.

— Sozinhos, não somos capazes de carregar o fardo do mundo em nossas costas, jovem. Para que possa refletir nos meios de como empregar as ferramentas que possui efetivamente a favor de suas causas, ao invés do oposto, irei te suspender até a próxima reunião do conselho escolar.

— Agora estou dispensado, "meritíssima"? — Sem-cerimônia, o rapaz já se levantava.

— Sim, Renan. Como irei redigir ainda sua suspensão, pode ficar hoje até o almoço...se quiser.

Entre o Céu, a Terra e o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora