Capítulo 4

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Renan recostou na bancada da cozinha, logo após ter alongado o tronco.

— Acordou com dor nas asas, rapazinho?

— Minhas asas estão ótimas. A propósito, Nicole... E o seu chifre? Ou melhor, cotoco de chifre.

— Combinando com meu novo corte de cabelo. O que vai querer para o desjejum?

— Me vê um pouco do "melhor não saber".

— Ora, ora...os anjos também têm senso de humor!

— Hoje não estou pra papo — respondeu o rapaz, já demonstrando que não tinha interesse em retomar o clima beligerante da noite anterior com a irmã, que, ainda assim, não perdeu a oportunidade.

— Sem papo de anjo. Pedido anotado.

Renan decidiu ignorar a galhofa de Nicole e a refeição matinal transcorreu na mais completa quietude entre os dois irmãos.

Até que, ao ter se dado conta da hora marcada no relógio de parede, o rapaz levantou de sobressalto.

— Melhor irmos logo, para não nos atrasarmos no primeiro dia de aula de fato.

— Sem pressa. Qualquer coisa, compenso nosso atraso no trânsito.

Renan sentia ânsia só de pensar na irmã guiando alucinada mais uma vez no tráfego de Excelso.

— Você ainda vai nos meter em encrenca. Sabe ao menos onde guardou a chave do automóvel desta vez?

— Claro. Na minha bolsa, no mesmo compartimento dos preservativos. Afinal, atitude segura é tudo.

— Não recebo para ouvir isso... — se lamuriava o jovem, já carregando displicente a mochila em direção à saída dos fundos.

Mal se acomodara no assento do carona, Renan resolveu interpelar a irmã para uma conversa franca.

— Antes de sairmos, gostaria de lhe propor um armistício entre nós.

Nicole deteve por um instante a chave na ignição e passou a contemplar o rapaz, com vívida atenção.

— Você sempre com palavras pomposas. Uma bandeira branca?

— Exato. Se deixarmos nossas diferenças de lado, talvez tenhamos sucesso mais célere nesta empreitada. Seria capaz deste sacrifício, Nicole?

— Claro! O que não faço pelo meu irmão predileto.

Diante desta declaração, Renan estendeu a mão à irmã.

— Os humanos costumam selar acordos com um aperto de mão.

— Ok, Renan. Mas e você? Confiaria na palavra de uma Criatura das Trevas, depois da nossa desavença no Pôquer das Almas?

— Tudo vai depender de sua atitude a partir daqui. Estou disposto a te dar um crédito, se é isso que deseja saber.

Em um movimento súbito, Nicole desafivelou o cinto de segurança, agarrou o rosto de Renan e tascou um beijo em sua bochecha.

— Um beijo fraternal, rapazinho. Não vá se empolgando.

— Tá. Agora comporte-se.

Renan não disfarçou o sorriso de satisfação ao perceber a mudança de comportamento de Nicole no trajeto até a escola, respeitando os limites de velocidade e semáforos.

Realmente, ela aparentava ter levado a sério a trégua entre eles. De toda maneira, um pensamento tilintava na mente do jovem. E se tudo aquilo não fizesse parte de mais alguma trama diabólica de Uzá? Sem seus poderes angelicais, não restaria alternativa a Azael senão acreditar no compromisso firmado. Afinal, a criatura também teria algo de valioso a perder, em caso de fracasso naquela missão.

Assim que Nicole terminou de estacionar o veículo, ocupando apenas uma vaga, Renan não resistiu à oportunidade.

— Viu? Chegamos na hora, sem ter recorrido à bandalhas.

— Aqui se chama "baianada".

— Isso não soa preconceituoso?

— Não fui eu que cunhei esse termo — Nicole deu de ombros para o comentário do irmão.

— Nos encontramos então no refeitório no intervalo das aulas?

— Melhor não. Pode pegar mal para minha reputação se me flagrarem na companhia do irmão fedelho. Toma um trocado para o lanche.

— Obrigado, "mana" — Renan saiu resmungando ao perceber que não conseguiria comprar um mísero salgado com aquela cédula.

A primeira aula de Renan transcorreu normalmente. Até porque fisiologia humana sempre foi uma de suas especialidades.

"Como o ser humano ainda conhece tão pouco do próprio organismo? ", se indagava o rapaz.

Cada resposta certa de Renan vinha acompanhada de risinhos de um grupo que se encontrava nas carteiras do fundo da sala. O rapaz reconhecera alguns desses alunos. Cinthia, Arturo e Hugo. Chegou a ensaiar um aceno, mas logo percebeu ter sido ignorado pelo trio, tal qual um ser invisível.

Renan não se surpreendera com aquela reação. Se tinha algo que bem conhecia dos seres humanos era a natureza perversa e mesquinha deles. Não haveria espaço para guerras, miséria e fome na Terra se fosse diferente.

Um estranho incômodo, todavia, se apossou de Renan quando ele percebeu um rapaz o encarando na carteira ao lado. Procurou disfarçar a sensação de desconforto até o término da primeira aula.

Por sorte, a aula seguinte seria com outra turma e seu alívio ao notar o misterioso garoto se retirando da sala foi evidente.

Ao término da terceira aula, Renan se dirigiu ao refeitório junto aos outros alunos da ala do primeiro ano do ensino médio.

Depois de se servir de um suco de caixinha e uma maçã e se acomodar em uma das mesas, o jovem é surpreendido por uma voz histriônica. Era sua irmã.

— Olá, Nicole. Pensei que você tinha falado que me evitaria durante o lanche.

— Esquece. Tenho novidades. Durante a aula de economia doméstica fui abordada pela Jordie.

— É mesmo? E o que ela queria?

— Você.

— Como assim?

— Deixa te explicar, rapazinho. A Jordie me perguntou sobre você. Quase um interrogatório.

— E daí você concluiu que o interesse dela tem motivação sentimental.

— Dê o nome que quiser.

— Sem chances, Nicole. Não estou aqui para me envolver amorosamente com uma humana.

— Receio de ter outra recaída, como aquela que te levou ao Pôquer das Almas?

Ao perceber o tom ácido que proferira, Nicole se recordou da promessa de colaboração com Renan e decidiu por apaziguar os ânimos.

— Olha, temos que nos enturmar com os outros jovens para identificar aqueles que necessitam de nossa ajuda. É só entrar no clima de flerte e nada mais. Sei que você já trabalhou com o cupido e conhece as manhas.

Renan não conteve o sorriso, até que seu semblante mudou, a ponto de Nicole ter reparado.

— Que foi, maninho?

— Disfarça. Um sujeito estranho nos encarando, sentado na mesa atrás de você. Já ficou me esquadrinhando na aula de biologia.

Nicole virou o rosto sem cerimônia para confrontar o tal aluno.

— Ah, sim. Ele também ficou me analisando com esse olhar de peixe morto quando vim para cá. Pensei que fosse levar uma cantada, mas não.

— Pela chamada em aula, o nome dele é Eduardo Lousada de Alencar.

— Perfeito, irmãozinho. Vamos puxar depois a ficha corrida do indivíduo para saber mais detalhes a respeito.

— Prefiro uma abordagem mais direta.

— Não ponha tudo a perder. Lembra-se?

Ao se levantar com o toque da campainha, anunciando o término do intervalo, Renan dirigiu uma piscadela à irmã.

— Prudência é meu sobrenome.

Entre o Céu, a Terra e o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora