Capítulo 39

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O beijo de Renan impregnava os lábios de Jordana. Aquele sabor que ela bem conhecia, dos encontros furtivos nos esconderijos que "batizaram" no Sideral. Corpos estirados há pouco na relva. A ponta dos dedos dela, ainda úmida com o toque na gramínea coberta pelo orvalho da manhã. A declaração de amor do rapaz, sob sussurros ao pé do ouvido. Sonho...

Mas como era possível aquela sensação tão real?

A jovem não sabia a resposta à questão. Estava grogue, certamente pelos efeitos dos medicamentos prescritos durante sua alta médica. Quiçá fossem estes os responsáveis pelo tal devaneio que tivera com Renan.

A bandeja com um copo de suco de laranja e biscoitos integrais, sua próxima refeição, confirmavam a suspeita. Mal conseguia se lembrar das refeições que havia feito desde que saiu do hospital.

Sentada na cama do seu quarto, enquanto abraçava os joelhos, Jordana refletia sobre os últimos acontecimentos, tentando concatenar as lembranças.

Fazia um esforço para evitar a decepção com as atitudes recentes do namorado.

"Na certa, os traumas de Renan que Nicole revelou afetaram suas ações. A perda da mãe, os abusos, a ausência do pai...", Jordana especulava, traçando um paralelo com a própria vida conturbada.

Quando, enfim, os objetos ao redor pararam de girar, a moça decidiu levantar-se. Por sorte, a luz do abajur na mesinha de cabeceira estava ligada.

Aventurando pelo quarto em passos vacilantes, Jordana conseguiu chegar à porta que dava para o corredor. Trancada.

Logo procurou a chave pelo piso de tábua corrida. Em vão.

"Dona T", a jovem praguejou o nome da mãe. Aos olhos dela, o sinônimo de sua desgraça.

Sem alternativa, Jordana abaixou até que a cabeça estivesse rente à maçaneta. A seguir, espiou pelo buraco da fechadura. Tapado.

Isso só podia significar um coisa. A chave foi deixada do outro lado da porta, quando esta foi trancada.

Rapidamente Jordana foi vasculhando sobre a penteadeira, dentro de gavetas da escrivaninha, no interior do armário.

"Nada cortante ou perfurante. Como era de se esperar.", deu um sorriso irônico.

Até que dois objetos já estivessem em suas mãos.

Ela então enfiou o cabo fino do pente de plástico pelo buraco da fechadura com uma das mãos, enquanto a outra estendia parte da folha de papel pelo vão debaixo da porta.

"Esteja na posição correta, pelo-amor-de-deus!"

O som cavo da chave chocando-se no tapete em frente a porta foi recebido com suspiro de alívio pela adolescente, que só teve o trabalho de puxar a folha de papel para dentro, recolocar a chave na fechadura e girá-la.

Com a porta finalmente destrancada Jordana lançou os olhos pela fresta antes de escancará-la, após se certificar de que o corredor encontrava-se vazio.

Mesmo descalça, a jovem andava pela ponta dos pés até chegar próximo à escadaria que dava para o andar térreo. Conservava a esperança de ir ao encontro de Renan para, quem sabe, se reconciliarem.

Dali, Jordana era capaz de escutar duas vozes familiares vindo da cozinha.

— Sei que sou uma reles cozinheira, Rose. O que entendo de pedagogia foi com a prática de ter sido mãe. Só digo e repito: não acho certo a Senhora Kashif trancar a pobre Jordie no quarto, naquele estado.

— Pobre somos nós, Ângela. Agora a Dona Tônia, além de letrada, é diretora de hospital. Sem contar todo o histórico passado com a filha. Deve saber como tratar casos assim.

— Filho não é só um "caso" qualquer... — a cozinheira resmungou com a governanta, logo voltando a seus afazeres.

Enquanto digeria a conversa entre as duas funcionárias, Jordana percebeu que seus pulsos estavam nus. Ao invés dos braceletes bordados que só tirava para tomar banho, via as marcas expostas de seus últimos surtos. "Será que foi isso que, no fim das contas, afastou Renan de mim? Minha natureza autodestrutiva?"

De relance, a moça observou algo surpreendente no final do corredor. A porta do quarto da mãe. Totalmente aberta.

Receosa, ela caminhou em direção àquela imagem que sempre lhe causou um misto de apreensão e curiosidade. O que sua mãe escondia ali de sua vista por todos esses anos?

Após confirmar que o cômodo estava de fato vazio, Jordana tomou coragem e adentrou naquele ambiente proibido.

Ao mesmo tempo em que investia nos objetos no closet da mãe, a moça imaginava a ironia da situação. Foi graças a esta nova recaída que surgiu seu lance de sorte. Dona Rose negligenciou os rígidos protocolos de segurança da patroa, na confiança de que Jordana seria incapaz de acessar o quarto da mãe, estando confinada na sua "prisão particular".

Até que algo deteve a atenção de Jordana. Por cima de uma caixa, havia uma espécie de caderno.

Logo a moça deduziu que se tratava de um diário. O "diário de Dona T".

Jordana pegou o "tesouro cobiçado" o apertando contra o peito e decidiu levá-lo consigo para seu quarto. Não queria correr o risco de ser frustrada em sua tentativa de descobrir os segredos tenebrosos da mãe com a súbita aparição da governanta.

Assim, a moça regressou ao seu quarto, tendo o trabalho de trancar a porta e jogar a chave para o lado de fora, através da abertura de baixo.

"Dona Rose nem vai desconfiar da minha peraltice. No muito, irá pensar que a chave caiu sozinha da fechadura.", especulou Jordana, já se enfiando debaixo da coberta.

A jovem começou a folhear o diário da mãe delicadamente.

Os olhos de Jordana se estacionaram nos versos contidos na primeira página do diário da mãe:

"Ainda que eu falasse

A língua dos homens

E falasse a língua dos anjos

Sem amor eu nada seria

É só o amor!

É só o amor

Que conhece o que é verdade

O amor é bom, não quer o mal

Não sente inveja ou se envaidece

O amor é o fogo que arde sem se ver

É ferida que dói e não se sente..."

É um contentamento descontente

É dor que desatina sem doer" 8

De súbito, algo caiu do diário. Era uma foto desbotada nas pontas, pela passagem do tempo. De Antônia, com roupa de praia.

Jordana reconheceu a paisagem que se descortinava ao fundo. Já havia estado lá com os pais, em um passado remoto. Cancun.

Apesar dos óculos escuros, era nítida a felicidade que sua mãe exalava. Uma felicidade que Jordana não se recordava de compartilhar com ela.

Abraçado a Antônia, se encontrava um homem. Um homem de olhar penetrante que a jovem não conhecia.

8. "Monte Castelo", Legião Urbana (Composta por Renato Russo)

Entre o Céu, a Terra e o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora