Capítulo 42

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Aos poucos, Nicole recobrava a consciência. Mesmo grogue, era capaz de identificar um cheiro acre invadindo as narinas.

Quando finalmente se permitiu reabrir os olhos, lutando contra a dor pulsante na cabeça, a moça passou a sentir um temor crescente apossar de si, à medida que tentava enfocar na penumbra ao redor.

Em meio ao entulho espalhado por aquele imóvel que aparentava ser o antigo depósito de alguma área degradada da cidade, seu corpo se estendia pelo piso frio. Confinado no centro de uma figura familiar ali traçada.

— O Círculo de Kil'ba. Se fez seu dever de casa direitinho, sabe que a tentativa de fuga daí é totalmente inútil. Até poderia se arriscar na sua forma humana, não estivesse sob efeito do entorpecente que te apliquei. Uma pena.

Uma gargalhada funesta ressoou pelo ambiente, causando náuseas em Nicole.

Sem saída, a jovem tinha que se apegar ao fiapo de esperança ao qual lhe restava: desestabilizar seu algoz. Para tanto, forçou-se a falar, ainda com a respiração arfante:

— Um a zero para você, Ulisses. E seja lá quem mais esteja contigo.

— Ah, tem certeza de que não se lembra mesmo de mim? Deste jeito, fico até decepcionado contigo, Uzá. Tão audacioso em me confrontar, e ao mesmo tempo tão ingênuo em se achar capaz de me suplantar. Acho que passou muito tempo entre estes humanos estúpidos.

De olhos fechados, Nicole franzia o cenho, como se a puxar pela memória, antes de pronunciar um nome:

— Focalor! Sua fedentina fica ainda mais evidente sob narizes mortais. Ou você se esqueceu de colocar seu humano possuído para tomar banho este tempo todo? Teve sorte de não ter sido pego pela polícia antes por isso...

Em resposta às provocações verborrágicas da moça, a criatura batia palmas vigorosas.

— Muito bem. Só que sua tática não cola comigo. Os efeitos do coquetel de substâncias que inoculei em seu organismo mortal tardarão a passar. Até lá, você estará completamente à mercê dos meus caprichos.

Nicole logo percebeu que não se tratava de um blefe do seu raptor. Mesmo conseguindo articular melhor a fala, ela ainda era incapaz de movimentar seus membros.

Ciente de que sua existência dependia das atitudes que tomaria a partir dali, a moça decidiu se arriscar num último recurso.

— Ora, Focalor...um demônio de quinta não teria audácia e capacidade de confrontar o Céu e o Inferno, se não houvesse alguém, digamos, "mais habilitado" a engendrar um plano de tal magnitude.

— Muito honrado com seu elogio, Uzá — a figura sinistra se manifestou, inabalável — Não é toda vez que recebemos o reconhecimento de um protegido por um arcanjo infernal.

— Ah, então é isso, afinal? Quis chamar a atenção de Titio Azrael, por ciúmes.

Naquele instante, o espectro desembainhou uma adaga.

Um pavor inominável então se apoderou de Nicole, ao notar que a arma a qual Focalor, travestido de Ulisses, empunhava possuía dupla lâmina. Uma forjada com aço humano e outra com o brilho típico da têmpera do aço feérico.

— Pode ficar tranquilo. Ou tranquila, se preferir. Essa aqui guardei exclusivamente para ti e aquele idiota do Azael. Usei outro punhal naqueles garotos sacrificados.

— Sacrificados, em nome de seu antigo mestre, o finado Lúcifer. Ah...me poupa, Fo-fo! Já passou do tempo de virar este disquinho furado.

— Você acha mesmo que possuí esse humano por algo tão reles? Sabe de uma coisa...Cansei de gastar meu latim contigo. Sinta agora a sensação da vulnerabilidade humana diante da morte inevitável, minha criança. Em nome da Causa Mater!

Entre o Céu, a Terra e o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora