Capítulo 5

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No trajeto de volta à casa, Nicole decidiu interpelar Renan sobre o primeiro dia de aula dele.

— Bem, aproveitei a aula experimental de química no último tempo para me aproximar de Jordie, a pretexto de formarmos dupla para um experimento científico.

— Muito bem, mano. E chegou a beijá-la?

— Que isso! Como disse antes, não preciso me envolver emocionalmente para conquistar a confiança dela.

— Está se saindo um perfeito Casanova, hein? Só cuidado para não arrasar o coração da moça com esse seu charme angelical.

— Acha mesmo que ela pode ter tendências suicidas, Nicole?

— Pelo comportamento que aparenta, Jordie seria minha primeira aposta dentre aqueles que já tivemos oportunidade de conhecer no Cosmos até agora.

— Óbvio. Não seria uma criatura infernal se fosse incapaz de identificar as vulnerabilidades e fraquezas dos humanos...

Possivelmente, aquela observação do rapaz tenha sido despretensiosa. Apesar disso, Nicole não pôde evitar uma pontada de mágoa que, entretanto, buscou disfarçar quando retomou o raciocínio.

— Estando presos à forma humana, só nos resta apelar para uma investigação à moda antiga. Eu como amiga confidente de Jordie, e você... bem como um flerte.

— Tomara que esteja certa quanto a isso. E quanto a você, Nicole? Se comportou longe de mim hoje?

— Digamos que não tenha feito nada digno de arrependimento.

— Se conseguiu não ser suspensa no primeiro dia, já te considero no lucro. Agora, a gente bem que podia fazer algo de irmãos depois do dever de casa.

— Por exemplo?

— Jogar videogame juntos. Que tal?

— Depois do acontecido na Mansão dos Mortos, melhor evitarmos um novo confronto, mesmo com fins recreativos. Falando em confronto, conseguiu dar uma prensa naquele tal de Eduardo?

— Ih, fiquei tão entretido com Jordie nas últimas aulas do dia que acabei me esquecendo dele. Mas amanhã aquele mané não me escapa.

— Talvez você devesse confiar no meu poder de persuasão.

— Aí que mora o perigo, Nicole — declarou Renan com um sorriso matreiro.

Mal chegaram na residência, os irmãos se separaram. Nicole foi preparar o jantar, enquanto Renan partiu para seu quarto a fim de finalizar o dever de casa, ao qual já havia iniciado ainda em aula.

Cerca de duas horas depois, Nicole se dirigiu ao quarto de seu irmão para chamá-lo para a refeição noturna, a qual já estava servida à mesa, quando ouve um ruído de diálogo por trás da porta entreaberta. Seus ouvidos humanos não conseguem identificar a voz do outro lado da ligação.

Por um instante, a garota hesitou, até perceber que o som havia cessado dentro do quarto. Era sua deixa para agir.

— Rapazinho, o jantar já está pronto. Pude jurar que ouvi uma conversa.

— Escutando atrás da porta? Que feio, maninha...mesmo para um Ser Infernal. Era a Jordie, querendo ajuda para o relatório da aula experimental de hoje.

— E como ela conseguiu seu número, posso saber? — Questionou Nicole, se fingindo de enciumada ao bater a ponta de um dos pés no chão

— Eu passei para ela, ora bolas!

— Sei... agora vá lavar as mãos. Hoje você experimentará uma de minhas especialidades culinárias. Spaghetti com polpette ai quattro formaggi. Com os cumprimentos do chef Matteo Cambrotta.

— Ei, esse não era aquele crápula que assediava os funcionários no seu restaurante badalado em Turim?

— Ele mesmo. Foi parar no inferno, mas até que não era das piores companhias. Me ensinou várias receitas exclusivas que guardava a sete chaves em vida. Do alto de sua mesquinhez, não confiava em ninguém e por fim, já no tormento eterno, temia que seus pratos morressem com ele.

— Melhor então não deixarmos a comida esfriando.

— Vou abrir uma garrafa de vinho Chardonnay para nós.

— Lembra que sou de menor, mana.

— Prometo não te dedurar para o Papai.

— Ainda assim, prefiro suco de uva. Sem álcool.

— Já estava até me esquecendo que você é mesmo um porre — Nicole não perderia a oportunidade de instilar seu sarcasmo ao irmão.

Nos minutos seguintes, o jantar transcorreu em um clima ameno entre Nicole e Renan, um perguntando ao outro sobre frivolidades da rotina em seu círculo espiritual, entremeados por rasgados elogios do rapaz ao sabor da comida preparada por Nicole, com uma apetitosa mousse de chocolate com menta — "Uma verdadeira iguaria", segundo Renan, em um raro momento de elogio dirigido à irmã — fechando o jantar com chave de ouro. Até que a paz reinante é ameaçada por uma questão indigesta.

— Quem irá lavar a louça agora?

— Óbvio que você, Renan. Divisão de tarefas. Eu cozinho e você limpa.

O rapaz apoiou as mãos sobre a pia, enquanto observava o monte formado por panelas, pratos, copos e talheres, ali acumulados.

— Pensei que tivéssemos máquina de lavar louças.

— Você sabe que não me entendo com essas parafernálias humanas.

— Acho que o sentimento é mútuo — caçoou Renan.

— E você sabe se comunicar com essas criaturas desalmadas, por acaso?

O rapaz não resistiu, ante a indagação da irmã.

— É simples, Nicole. Basta conhecer a linguagem operacional delas.

— Como se eu tivesse a mínima ideia de onde encontrar esse treco.

— Ora, no manual de fábrica — arrematou Renan.

Entre o Céu, a Terra e o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora