34. Every living person deserves a restart

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Pela primeira vez em todo meu tempo morando ali, eu limpei a casa inteira. Abri as janelas enquanto varria, borrifei perfume nos cantos, passei cera no chão, troqueu os lençóis da cama. Tomei banho, tirei calmamente todos os pelos que não eram cavanhaque da minha barba, vesti roupas limpas, arrumei tudo que estava bagunçado, pus minhas coisas no lugar, bati o tapete na entrada do apartamento. Fiz um sanduíche e comi, com esperança de que Gerard fosse aparecer. Eu não iria me deixar abater, ficar triste, não. Ele viria. A hora que fosse.

Oito, quase nove da noite, ele chegou. Acho que foi conversar com Lindsey sobre mim antes de tomar alguma atitude irreversível. Ao menos ele veio, bateu na porta, me considerou uma alternativa sensata. Pouco me importa onde ele passou antes.

– Você veio. Legal. Entra. – abri a porta e apontei o sofá. Ele tinha feito a barba também. Estava bonito. Mais jovem. – Senta aí. Quer uma cerveja?

– Água vai servir. – respondeu enquanto tirava a jaqueta. Na minha cabeça ainda era estranho ele ter uma moto. Pouco depois que ele sentou no sofá eu dei um copo com água e deixei a garrafa na mesa de centro (que finalmente não estava coberta de cinzas de cigarro). – Então, vamos conversar.

– Sim. Eu logo me formo e vou começar a viver a minha vida… temos que planejar como te incluir nela.

Foram horas de conversa, acordos burocráticos, sorrisos, preocupações financeiras e outras merdas de adulto, sentados no sofá de mãos dadas. Nós dormimos juntos naquela noite, apenas dormimos, abraçados na minha cama torta e com cheiro estranho. Gerard roncou baixinho do meu lado nas primeiras horas da manhã, e eu não levantei enquanto ele dormia. Era tão bom ter alguém ali, saber que ele respirava do meu lado, que seu coração batia junto do meu, que eu não quis levantar e acabar com a magia do momento só pra mijar. Ali, olhando o homem do meu futuro dormindo de boca aberta enquanto o sol timidamente entrava pela cortina, eu tive certeza que coisas boas estavam por vir.

Merda, talvez eu soe piegas por isso mas é impossível não dizer tranquilamente que Gerard é o amor da minha vida. Não poderia haver outro.

– Bom dia. – murmurei assim que ele abriu os olhos. Sorrimos um para o outro.

– Você acordou há quanto tempo? – Gerard perguntou, a voz rouca.

– Uma hora ou coisa assim. Fiquei te olhando dormir.

– Esquisito. – disse, e beijou minha bochecha. É, eu podia viver com isso.

– Você se acostuma. Logo, todos os dias você vai acordar com esse maníaco te olhando.

Eu mal podia acreditar. Depois de tanto tempo sofrendo, mesmo durante nosso romance conturbado quando eu era mais jovem e mais burro, eu não me sentia daquele jeito. Antes estar com Gerard eram arroubos de alegria que eu sabia que passariam com alguma coisa que nos abalasse, mas naquele momento era diferente. Eu não me sentia alegre. Eu sentia aquele calor no peito, persistente, que quando você sente já sane que não vai embora e, se ou quando for, promete doer. Eu estava feliz.

– Assim espero.  

Nós concordamos sobre o que faríamos em consequência daquela noite, e em nossa conversa demomais me prostituir. Era um começo. A família de Gerard ajudaria no aluguel, considerando que ele trabalha de graça. Eu podia parar de comer carne e ele podia fazer ginástica aeróbica. Suéteres combinando no natal. Um sofá novo. Seria como começar a viver novamente.

E sim, coisas boas acontecem: tudo que eu acabei de dizer que podia ocorrer ocorreu. E muito bem.  decidimos coisas simples. Após minha formatura, ele visitaria minha família junto comigo para anunciar a união, e depois disso viria morar comigo. Ele ficaria mais longe da faculdade mas mais perto do trabalho, e Lindsey provavelmente ficaria feliz de poder voltar a morar sozinha. Eu queria levar pra frente meu projeto de educação para adultos, e ficaria difícil se/quando eu entrasse pra faculdade, mas Gerard prometeu ajudar. Para poder oficializar aquilo como uma ONG eu precisaria de mais atividades complementares e um assistente social formado. Essa era a parte fácil: ele é melhor amigo de uma quase freira. Então tínhamos o assistente social. Faltavam poucas coisas, e nós arranjaríamos. Eu estava muito animado sobre a ONG. Todos merecem um recomeço.

Antes da formatura mesmo eu já podia correr atrás de emprego. Eu tinha a recomendação de Amélie em uma empresa no WTC, e como ela conhecia muita gente lá eu provavelmente conseguiria a vaga. Nada muito espalhafatoso; a vaga era para office boy. Assim eu não precisaria mais me prostituir pelo aluguel. Tudo isso aconteceu, e minha vida obviamente melhorou. Mas antes disso aconteceu a formatura. E… bem, é digno de nota. 

•••

A formatura veio após o último dia de aulas, que veio duas semanas após as provas finais. Fui aprovado sem muitos destaques: uns poucos elogiaram meu desemprenho em inglês e artes mas só. Nenhum professor falou mal de mim, o que era um avanço. Aprovado sem louvores. Tanto fazia. A cerimônia foi celebrada num auditório de outro colégio, porque o nosso mal tinha quadra. Minha mãe, Bruno e Marie compareceram. Eu guardei lugar pra eles e disse que eles podiam dormir na minha casa se não se importassem demais. Não choveu nem nada. O pessoal da minha turma estava até falando comigo nas últimas semanas, e o clima tranquilo nos fazia importar com a formatura como um todo. Tudo estava indo muito bem. Estava, até eu entrar no auditório.

Parecia ter sido ontem. Eu fechei os olhos e tudo que podia ver era como se ele estivesse morto no palco. Lembrei do papel dobrado em sua mão. Uma carta, com certeza, que eu nunca cheguei a ler. Jonas morreu. Provavelmente por minha causa. Ele morreu. Alguma coisa boa já aconteceu por minha causa? Porra. Senti um aperto absurdo no peito, e tudo que pude pensar foi: eu não posso fazer isso.

Corri pra longe. Enquanto eu tentava não chorar, já fora do prédio, e acender um cigarro com as mãos trêmulas, uma mão tocou meu ombro.

– Você não devia fumar, Junior. – a pessoa disse. Era minha mãe. Olhei para ela; parecia preocupada.

  – Eu sei. – murmurei, e finalmente consegui acender. Traguei profundamente, tentando não pensar. E falhando.

– Eu sei por que você não se sente bem. Vai ficar tudo bem.

– Vai? Um dia eu vou acordar sentindo que não fiz alguém se matar? Ou não fodi com minha vida e com a de todo mundo ao meu redor? Jonas vai continuar morto amanhã. Não vai passar.

Eu soei rude, hoje admito.

– Você acha que eu não me sentia assim sempre que olhava pra você ou pro Bruno? Eu… eu sabia que vocês iam aparecer no jornal. Bruno na cadeia, você talvez morto. Tudo porque eu me sentia incapaz de melhorar. Agora eu tenho um namorado que me ama, e muito orgulho dos meus filhos. Seu professor de Artes me contou que você tem uma classe de alfabetização. Isso é muito bonito. Você tá certo, ele vai continuar morto amanhã. Mas você está vivo hoje e devia aproveitar isso. Não se sinta culpado pelo que você não pode mais mudar.

– Você consegue?

– O quê?

– Não se culpar. Às vezes eu estou me sentindo tão bem, e de repente esse sentimento toma conta.

Silêncio. Ela desviou o olhar. Daí abriu um sorriso. Eu me pareço muito com minha mãe. Aquele era o tipo de sorriso que eu dava quando estava prestes a ser terrivelmente sincero.

– Eu tenho filhos, Frank. É claro que eu não consigo.

Apaguei o cigarro e a abracei. Entramos no auditório juntos e, depois disso, tudo discorreu normalmente.

The Radio Guy Hates The ActorOnde histórias criam vida. Descubra agora