Correio

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Kepa acordou em meio a um dia normal em Londres. Dias normais, para o goleiro, traziam chuva. Forte ou fraca. Mais um dia tedioso, vazio e difícil. O goleiro tropeçou na tristeza e achou que nunca mais sairia daquela situação.

Ele se levantou, desceu as escadas e foi à cozinha. Estava sem vontade de comer, mas sabia que precisava se manter de pé. Pegou uma fruta qualquer e encheu um copo de água. Respirou fundo e comeu ali mesmo. O celular do espanhol tocou duas vezes. Era algum amigo do time.

Reconhecia pelo toque que escolheu. Haviam sons diferentes para cada tipo de pessoa que ele conhecia para facilitar as coisas. Os jornalistas com os quais chegou a ter contato nos anos em que ainda jogava na Espanha e os inúmeros e maldosos jornalistas esportivos ingleses não tinham um toque. Para eles, o celular apenas vibrava.

O goleiro amava dar entrevistas. Porém, em determinado momento, parou. Parou de responder. Parou de fazer tudo aquilo que o machucava. Mas ninguém entendeu o recado. Foi a partir do quase sumiço em frente às câmeras que ele acreditou que os repórteres ávidos por uma brecha o deixariam em paz.

Mas aquilo só fez aumentar a pressão da mídia. Ele cansou de lutar para se manter a salvo de especulações e ataques. Eles ajudaram a formar a opinião de muitas pessoas sobre o "goleiro sem sorte" e Kepa sabia muito bem daquilo.

O espanhol passou perto da porta da sala, onde encontrou um envelope amarelo no chão. Foi inserido por baixo da porta à noite por alguém. Pegou e observou a caligrafia. Não pôde reconhecer. Decidiu abrir e encontrou uma carta.

Kepa leu tudo e não acreditou. Correu os olhos pelo texto meticulosamente escrito e focou em cada palavra. Quem escreveu aquilo? Por qual motivo?

Ele não sabia as respostas. Analisou tudo e não conseguiu pensar em ninguém que pudesse escrevê-lo. Alguns amigos do time moravam por perto, mas não acreditou que um deles faria aquilo. Ainda mais por parecer algo tão revelador sobre a pessoa. Ele queria saber que fez aquele gesto de carinho, para poder agradecer de alguma forma.

A chuva havia reduzido. Uma folga bem no fim de semana era tudo que o goleiro precisava: queria descansar e ficar sozinho, algo que era impossível para alguém como ele. Sempre tinha que ver alguém. Sempre tinha que viajar. Sempre tinha que interagir, mas no fundo só queria dar um tempo de tudo e voar direto para a cidade onde nasceu. Só que nem tudo era perfeito.

O espanhol criou raízes no banco de reservas. As incertezas sobre uma nova chance só aumentavam a cada dia. Ele saiu do país em que nasceu para ser titular. Quer dizer, ele conquistou a chance de ser o camisa 1. Era dele. O mais caro da posição em todo o mundo. Não gostava daquele infeliz dado. Não era pelo dinheiro. Jamais seria.

Kepa não aguentava a curiosidade que emanava da carta, que foi colocada por ele na mesa em frente ao sofá. Sentou-se com os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos apoiadas na mandíbula. Buscou por vários minutos nas memórias, mas não se lembrou de ninguém que poderia ter feito aquilo.

Ele andou em círculos na sala e não conseguiu se acalmar. Trocou de roupa e foi até a garagem, pegou o carro e saiu sem rumo pela cidade. Chegou às proximidades do Hyde Park. A chuva parou e ele poderia caminhar tranquilamente. Colocou um boné na tentativa de passar despercebido e fechou a jaqueta, pois ventava muito.

Olhou para as pessoas. Algumas estavam sentadas nos vários bancos que haviam ali. Outras faziam piqueniques. Pais e mães caminhavam com os filhos. Casais apaixonados se abraçavam e andavam de mãos dadas. A caminhada do goleiro foi mais um gatilho do que uma solução.

Sabia que a realidade dele não era aquela. Ele havia saído de um relacionamento longo e profundo que o deixou despedaçado. Na verdade, não saiu. Foi chutado. Não só chutado como também traído. E traído da pior forma: desde o início.

Sentiu-se inútil por não ter descoberto a verdade antes. Não sabia como se levantar. A solidão tornou-se quase uma amiga. Ele não queria aceitá-la. Preferiu conviver com ela sem que a reconhecesse. Já sentia muita dor. Não precisava de mais do que aquilo.

Gostar de sofrer era bem diferente de aceitar o sofrimento. Gostar de sofrer não era abraçar o sofrimento. Mas Kepa viu-se, como em um novelo de lã embolada, envolto no sofrimento. Faltava-lhe ar. Faltava-lhe paz. Faltava-lhe ânimo.

Não queria continuar daquele jeito, mas não tinha muitas forças ou motivos para melhorar. Era como um desânimo. O acompanhamento com a terapeuta ajudava muito, mas ele precisava passar por tudo aquilo. E somente ele conseguiria sair debaixo de tanto peso e de tanta incerteza.

Profissionalmente, a vida dele ruiu. Perdeu espaço. Um novo goleiro foi contratado e ganhou oportunidade. Não se incomodou com um novo colega de posição além do outro que já havia no clube. Se davam bem. Não havia competição por espaço. Kepa não estava bem nem mesmo para competir pela vaga no time titular e isso agigantou o "concorrente", que se saiu bem nos primeiros jogos.

Foi tudo muito rápido. Os erros cometidos eram inadmissíveis para ele. Falhou ao não interceptar chutes longos e perfeitamente defensáveis. Falhou em pênaltis. Falhou de tantas formas que já nem sabia mais como resolver. Teve várias conversas com o treinador de goleiros do time. O homem intensificou a preparação dele, mas o problema não estava nos treinamentos. Kepa não estava conseguindo lidar com o jogo em campo. Essa era a dificuldade. A pressão o fazia ter queda no rendimento.

Bastou um jogo para que a primeira peça caísse. Daquela partida até a perda praticamente definitiva da vaga, várias peças de dominó caíram. Uma sequência triste e desesperadora de falhas e problemas. Ninguém compreendia. Muito menos ele, que se conhecia bem.

Não sabia quanto tempo levaria até que tudo aquilo passasse. Kepa precisava confiar em si mesmo novamente. Precisava se reencontrar. Porque em algum momento entre as noites solitárias após a descoberta da traição e as falhas sucessivas em campo, ele se perdeu. Não se reconhecia mais. A confiança deu lugar à insegurança. E assim tudo aconteceu.

Kepa precisava encontrar o caminho de volta. Ele precisava de um incentivo. Precisava de alguém que acreditasse nele. E parecia que aquela carta lida tantas e tantas vezes trouxe um lampejo de esperança para a vida do goleiro, que via-se em meio aos efeitos de uma traição e de sucessivos problemas profissionais. Será que ele enfim poderia ser feliz novamente?

Cartas | Kepa ArrizabalagaOnde histórias criam vida. Descubra agora