Kepa ficou dias analisando e lendo o conteúdo da primeira carta. Eis que na manhã de quinta-feira o goleiro viu outro envelope amarelo colocado por baixo da porta da sala. O nome dele foi escrito próximo à aba com a mesma letra arredondada.
Não hesitou em abrir o envelope. Ao retirar o papel dobrado, colocou-o sobre a mesa e sentou-se na cadeira mais próxima. Começou a ler. Cada palavra escolhida milimetricamente pela pessoa que escreveu atingiu o âmago do goleiro. Sentiu-se amparado como nunca antes.
Quando terminou, colocou o papel novamente sobre a mesa. Respirou fundo. O texto, escrito com tanto esmero, o deixou sem reação. Pensou que poderia ser alguém pregando peças. Kepa ficou desconfiado de tudo em relação às pessoas. Naquela fase da vida, não confiava tanto nos próprios amigos. Pegou dois deles debochando em cima do sofrimento dele.
Aos poucos, o goleiro foi se fechando. Manteve contato com pouquíssimas pessoas. Não ia mais a festas. Sentia-se incomodado em ambientes cheios. Por sorte não desenvolveu nenhuma fobia, mas o desconforto estava sempre presente. A última festa, organizada pelos companheiros de time, não contou com a presença dele. Um dos amigos até passou na casa dele para levá-lo, mas Kepa relutou e se manteve de pijama. Deu mais uma desculpa vazia para não sair.
Ele só queria trabalhar. Porém, tinha medo de voltar a jogar. Passou a ter medo da rejeição. Rejeição era um sentimento presente na vida dele. Os pais iam e voltavam da cidade onde ele nasceu para apoiá-lo. Gostava da presença da família. Por ele, os pais morariam por perto, mas o casal não aceitava passar muito tempo longe de casa.
O espanhol entendia os pais. A saudade de casa era difícil de suportar. Alguns colegas de equipe lidavam muito bem com aquilo, mas Kepa sempre associou a cidade em que nasceu, no litoral, ao porto seguro dele. Era lá que ele costumava se sentir tranquilo. Acostumou-se, quando criança, a ir às praias nas proximidades e a brincar com a bola na areia.
Voltar à casa dos pais na Espanha seria uma ótima saída, mas ele não podia viajar. O calendário do time era apertado e passava muito tempo se dedicando aos treinos. As férias ainda estavam longe. Felizmente, o natal seria em breve. Ele e os pais organizariam a ceia em Londres, porque o futebol não parava no fim do ano a ponto de permitir uma viagem do goleiro ao país dele.
Mas tudo bem. Ele teria uma boa e tradicional ceia. Tudo que queria no meio de toda a loucura em que a vida dele havia se tornado. Um momento de paz. Tempo para tomar vinho e espumante. Kepa perdeu a mão na bebida por algum tempo. Acreditou que inebriar-se no álcool seria a primeira e melhor solução para os problemas.
Não era. Ele soube em uma noite gélida de inverno que a bebida não aquecia. Não trazia ninguém de volta. Não fazia companhia. Não tinha compaixão. A bebida só o fez se sentir mais triste e inseguro. Passou mal com a quantidade de álcool no organismo e precisou ir ao hospital. Sentiu-se nauseado e com mal estar. Chegou quase ao coma alcoólico. Por sorte, o médico sabia quem ele era e fez de tudo pela discrição. Ninguém nunca soube daquilo.
A bebida sequer o fazia se distanciar da realidade. E que realidade... dura como o aço. Gelada como uma nevasca. Dolorosa como segurar um porco-espinho nas mãos. Ele não quis mais beber daquele jeito. Ao chegar em casa, virou todas as garrafas na pia da cozinha e as jogou fora. Beberia somente com responsabilidade e acompanhado. Sozinho, nunca mais.
Algo que a bebedeira temporária o fez refletir foi o quanto sofria e buscava desesperadamente uma válvula de escape. Ele decidiu conversar com o técnico e com o preparador de goleiros. Pediu para treinar um pouco mais. Não se opuseram, mas recomendaram que ele seguisse o que os outros da posição dele faziam, para não se sobrecarregar.
Sobrecarga? O espanhol riu ao ouvir aquilo. Sobrecarga era o nome e o sobrenome dele nos meses anteriores. Eles não entenderam a risada, mas aceitaram o aumento no tempo de treino. Kepa se desafiou. Seria o seu próprio oponente. Colou no próprio espelho do quarto um post-it com a frase "pegue o seu sorriso de volta". Achou a mais pura besteira do mundo, mas deixou o papel ali.
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Cartas | Kepa Arrizabalaga
FantasyKepa começa a receber cartas de alguém que o motivam a acreditar mais uma vez nas pessoas. Ele terá que se reconectar com as próprias raízes para reconstruir a vida depois de perder o espaço que tinha no time e na seleção e de sofrer ataques de pess...