Identidade

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Alerta de gatilho para disforia.
Nico narrando
Ninguém entende. Nunca entenderam e nunca vão entender. Se não entendem, não aceitam. Minha mãe não aceitaria. Nem minha irmã. Meu pai não vai aceitar. Meus amigos não vão. Eu vou ficar sozinha. Sozinho. Sozinhe. Tanto faz, a solidão já me assola de qualquer forma! Ninguém vai me entender, entender o que eu sou... Ninguém...
MALDITO GÊNERO, MALDITO PAU NO MEIO DAS PERNAS, MALDITA SOCIEDADE MALDITE TUDO QUE ESTÁ ME FAZENDO PASSAR POR ESSA MERDA TODA!!! JÁ NÃO BASTA GOSTAR DE RÔLA E SER VIADO, TEM QUE SER TRAVECO TAMBÉM!!! Merda de gênero... que ódio! Eu nem pedi pra ser bigênero...
Batidas na porta do meu quarto interrompem minha autodestruição. Meu pai me chama para o jantar. Ele diz que me ama independente de escolhas, e de "não-escolhas", como ele chama, mas eu não consigo acreditar. Não sei porque, só não consigo. Talvez seja porque meu delírio como doente disfórico veja tudo de ruim o tempo todo e diga que não tem espaço pra mim nesse mundo, me dizendo pra ir pro inferno. Sei lá. Escondo os muitos cortes sangrentos nos meus braços, lavo o rosto, respiro fundo e saio para tentar sobreviver. Meu pai fez macarronada. Acariciou meus cabelos, os quais eu pedi para que ele não mandasse cortar, para eu mesma repicar. Eu mesmo. Ah sei lá! Mas dá pra ver que ele viu algo de errado. Como se não bastasse tudo, meu pai tem instintos paternos muito aguçados, então ele sempre sabe quando tem algo errado. Eu me sinto sujo sabendo que tenho um pai tão bom. Eu não mereço, sou uma maldita aberração! Ele se sentou na minha frente, sério, e disse que me colocaria na terapia. Terapia. Por que? Pra que gastar um tempo tão precioso?! Ele poderia simplesmente negligenciar completamente minha existência e ser feliz, mas não, ele prefere cuidar do monstro que ele nem sabe que tem em casa. Estou cansada de armários, quero queimar o meu, de preferência comigo ainda dentro dele, queimando junto. Merda de bigênero! Ódio!

***

Meu quase-namorado também viu que eu não estava bem. Me abraçou. Me disse que as coisas iriam melhorar. Disse que a vida é como as estações: nem sempre é frio, nem sempre é quente, nem sempre está em um desses dois parâmetros, alguns momentos são melhores, outros piores, outros mais ou menos. Fofo. Eu queria não ser apaixonado por ele, e queria menos ainda que ele retribuísse os sentimentos. Porque eu só queria ser saudável, queria que valesse à pena me namorar, mas não, eu sou completamente quebrada. Queria não ser, mas sou. Será que vale à pena me tratar? Ou é mais fácil só livrar o mundo de mim? Eu quero que a dor acabe, mas eu gosto da sensação que é ficar com quem eu gosto. Mas será que vão gostar de mim sabendo o que eu sou? Acho que não.

N:- eu não sou um cara, sabia?

Soltei simplesmente. Já que eu sou um monstro, então que saibam que eu sou um monstro. Que me matem logo.

W:- então o que você é?

Ele perguntou na maior gentileza.

N:- bigênero, ou aberração se preferir.

W:- você não é uma aberração. Você é perfeita.

Foi estranho ouvir ele falar um pronome feminino pra se referir a mim. Mas foi gostosinho ouvir.

W:- mais alguém sabe?

N:- não.

Ele me fez carinho e me deu um beijo. Nesses momentos eu sinto um pouco de paz. Mas eu mereço isso?

W:- não me deixa, tá bom?

Olhei para ele.

W:- eu já vi esse olhar mais duas vezes. Não me deixa.

Lee e Michael. Ses irmes que se mataram por disforia. Ele passou por isso duas vezes e ficou muito mal. Ele aguentaria uma terceira vez? Eu queria mesmo saber a resposta? Não, não quero. Quero ver ele sorrir. E ele sorri quando está comigo, mesmo eu sendo um monstro. Will gosta de monstros. Monstros como eu. Já ouviu falar em skoliossexualidade? É atração por não binarismo. Will é skoliossexual. Então ele sabia que eu não era um cara. Não tenho ideia de como. Mas eu o amo.

N:- eu te amo.

W:- também te amo.

Ouvi zoações. Uns caras nos julgando. Fodidos. Antes odiassem a morte, a fome, o próprio ódio, mas não, odeiam anjos tipo o Will. Se eu sou um monstro, esses putos são demônios. Will me deu um beijo bem intenso na frente deles. Eles devem ter dito algo, mas eu não prestei atenção, afinal, Will estava com a língua na minha boca.

N:- eu sei que parece muita covardia, mas fala pro meu pai por mim?

W:- falo.

Mais um beijo.

***

Quando cheguei em casa, tinha uma saia preta rodada em cima da minha cama, com um bilhete.

"Está tendo problemas com isso, não é? Deu pra ver pela sua carinha. Deixei um kit de primeiros-socorros equipado no banheiro, por favor, cuide desses cortes e não os abra de novo, ok? Eu amo você incondicionalmente, você sabe disso. Mande a parte podre da sociedade se foder, eles não valem nada perto de você. "

Eu sei que ele entende quando eu não quero olhar nos olhos. Então ele deixa bilhetes. É mais uma parte de ser um pai excelente. Entender mais de mim do que de si mesmo. Experimentei a saia. Ela é meio longa, passando um pouco dos joelhos. Gostei. Passei meu batom prateado, meu perfume favorito, penteei os cabelos, coloquei o cropped roxo, o sobretudo preto e os coturnos com correntinhas. Eu gosto disso. A campainha toca. Abro a porta, dando de cara com meu anjo segurando um buquê de rosas brancas. Minhas preferidas. Eu mereço tanto?

W:- tão lindo... me deixa todo sem graça assim tão bonita.

Sorri para ele. Coloquei o buquê num pote d'água e voltei para ele, agradecendo o presente e dando-lhe um beijo. Ele pegou minha mão e me trouxe para fora. Esperou enquanto eu trancava a porta, e saímos de mãos dadas. Paramos numa lanchonete com tema LGBT+, onde haviam literalmente todas as bandeiras. Agênero, bigênero, abrossexual, skoliossexual, arromântica, gay, pan, bi, lésbica, etc. Eu amo essa lanchonete. Tem uma história linda. Os filhos do dono são LGBTs assumidos, e sempre que saíam para comer com os amigos, eram atacados por grupos preconceituosos. Então o pai deles criou esse lugar, uma área extensa, com mesas dispersas, facilitando também o acesso de cadeirantes, incluindo que a entrada conta unicamente com uma rampa. Aqui qualquer pessoa que merece respeito pode comer tranquila. O cara pensou em tudo. Existem três cardápios: um comum de lanchonetes, um vegetariano e um vegano. Os três são encontrados no mesmo folheto acessível em todas as mesas. E além de tudo, a altura das mesas e cadeiras pode ser regulada, conforme a altura de cliente. Uma vez tentaram fechar essa lanchonete, mas acontece um protesto gigante na frente da prefeitura impedindo que ela fosse fechada. Fizeram uma inspeção e realmente não acharam nenhuma irregularidade. Desde então esse lugar é o terror dos preconceituosos.

Eu e Will fomos atendidos de muito bom grado por uma garçonete, que anotou nossos pedidos e sumiu por detrás da bancada. Na lanchonete também haviam um grupo de jovens negros em uma mesa, um casal em outra e um trisal sentado nos bancos da bancada. O ambiente é sempre muito reconfortante por aqui. O bairro é conhecido por ser um dos mais receptivos de NY, tanto que todas as igrejas evangélicas, clubes racistas, homofóbicos e transfóbicos se mudaram há algum tempo, fazendo com que praticamente todo o preconceito sumisse (exceção àqueles caras da escola, mas fora eles, não tem mais ninguém. Tanto que eles próprios são atacados volta e meia). Pensar nisso tudo me fez refletir sobre porque me odiar. Se todo mundo ali era tão receptivo, por que eu não era comigo mesma? Por que parecia tão errado em mim, mas em outras pessoas parecia tão certo? A disforia funciona de um jeito bem estranho, na verdade.

W:- mergulhado em pensamentos? Não se afogue, meu amor.

Dei uma risadinha.

N:- ok.

Nossos pedidos chegaram. Comemos como qualquer bom casal, trocando beijos e brincadeiras enquanto comíamos. Por fim, Will colocou um anel no meu dedo. Prateado com esmeraldas pequenas em toda a extensão. O dele era igual, porém dourado. Namoro oficial.

Só mais um recadinho:

Seja você homossexual, bissexual, pansexual, polissexual, assexual, abrossexual, skossexual, pláciossexual, bigênero, agênero, homem, mulher, trans, cis, gênero fluído ou qualquer outra identidade de gênero ou orientação sexual, saiba que sua vida vale a pena ser vivida, e mesmo que esteja em um período ruim, lembre-se que todo mundo passa por isso e que tempos ruins passam.

Não era a intenção terminar o cap com uma consulta couch, mas né, sem querer. Quem mais queria que esse bairro fosse real e moraria lá?

SOLANGELO NOSSO DE CADA DIA!!Onde histórias criam vida. Descubra agora