capitulo 5

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Alice: Seria tão bom se alguma coisa fizesse sentido pra variar!
(Alice no País das Maravilhas)

Acordei hoje cedo com uma sensação estranha. Eu sabia que tinha alguma coisa diferente, mas não lembrava o
que era. Fiquei com medo de estar atrasada para a aula, mas me lembrei que era sábado. De repente, uma coisa
peluda raspou no meu pé e eu dei um pulo só! Ainda bem que eu não gritei, senão teria acordado o pessoal todo da
casa da Gabi, que é onde eu me lembrei de repente que tinha dormido. A “coisa peluda” era o Mignon, o gato
deles, que devia estar morrendo de fome e tentando chamar a atenção de alguém.
Aos poucos, fui me lembrando dos eventos da noite passada. Os pais da Gabi fizeram uma festa de bodas de
prata, e ela convidou a gente (eu e o Leo) para “não ter que ficar sozinha no meio da velharia”.
Tinha tempos que eu não via uma festa tão animada! Os garçons – que passavam servindo cada salgadinho mais
chique do que o outro – tinham que tomar cuidado para se desviarem das pessoas sem derrubar nada.
A festa estava marcada para as 21 horas, logo após a missa que eles mandaram celebrar. Eu não consegui ficar
pronta a tempo da missa, já que a Gabi avisou meio em cima da hora e eu ainda tive que ir com a minha mãe ao
shopping pra comprar um presente para os pais dela. Então, fui direto pra festa, morrendo de vergonha.
Eu resolvi vestir o meu vestidinho preto longuete de chiffon que tem uma fenda na perna direita até a altura do
joelho, prendi meu cabelo em um coque um pouco desfiado (mesmo sabendo que coques não duram muito tempo
no meu cabelo), passei sombra, rímel, corretivo e gloss e pedi para o meu pai me levar.
O meu irmão estava chegando em casa nesse momento – ele faz faculdade de Medicina no interior e vem aos
finais de semana – e perguntou onde era o baile.
“No reino de Far-far-away, e eu vou voltar de lá transformada em ogra!”, eu respondi pra ele.
Ele disse: “Contanto que seu ‘príncipe-ogro’ seja bem rico e arrume um emprego bem legal para o cunhadinho
dele, você pode se transformar no que quiser!”.
Esse Alberto... o engraçado é que a gente costumava brigar muito antigamente, mas, depois que ele foi para a
faculdade, eu tenho sentido saudade. São quatro anos de diferença entre nós, mas eu sempre fui mais próxima do
meu outro irmão, o Inácio, que é 12 anos mais velho do que eu. Quando o Inácio se casou, eu tinha só dez anos e
achei muito estranho aquele casamento corrido, de uma hora pra outra. Depois de um tempinho, quando a minha
sobrinha nasceu, é que eu fui entender o motivo de tanta pressa. Mas parece que ele não gosta mesmo de perder
tempo. Depois dela, eu ganhei mais dois sobrinhos, gêmeos, e é por causa dessa sobrinhada toda que eu não posso
ter um cachorro, tendo que me contentar com a Josefina, que não solta pelos nem causa alergia em ninguém.
O Alberto se ofereceu para me levar à festa, e eu achei até bom, já que é sempre melhor ser vista acompanhada
por um cara bonitinho do que pelo próprio pai. Chegando lá, o Alberto mandou que eu tivesse juízo (ah, tá, olha só
quem fala...) e eu entrei no prédio da Gabi, rezando pra me encontrar com ela logo.
Eu estava entrando no salão de festas, tentando localizar algum rosto conhecido no meio da multidão, quando
senti um copo gelado encostando nas minhas costas (que estavam descobertas por causa do modelo do vestido).
Virei rápido e dei de cara com o Leo, rindo daquele jeito dele que deixa aparecer uma covinha. Eu fiquei tão
aliviada por não ter mais que entrar sozinha no meio daquela gente toda que dei o maior abraço nele! Nesse
momento percebi o quanto o Leo estava cheiroso. Me afastei um pouco para comentar e foi aí que eu reparei na
elegância do garoto!
“Caramba, Leo! Nunca te vi de terno! E gel! Você está bonito!”
Ele se virou pra mim e disse: “Bonito? Puxa, valeu! Quer dizer que hoje eu estou bonito?”.
Eu sempre passo a impressão errada! Fiquei toda: “Não, Leo! É só que você ficou diferente... você sempre é
bonito, mas hoje está...”, eu não encontrei uma palavra adequada, fiquei só balançando a cabeça ainda chocada
com a diferença que a roupa pode fazer em uma pessoa.
Ele então, aproveitando a minha confusão, falou: “Ah, então no colégio eu sou um lixo e agora eu fiquei um lixo
reciclado, é isso?”, e ficou me olhando meio sério.
Aí eu resolvi mudar de assunto antes que piorasse mais as coisas. Perguntei se ele queria procurar os pais da
Gabi comigo, porque eu ainda não tinha dado os parabéns.
Encontramos os dois perto da mesa do bolo, a Gabi estava bem ao lado deles e pareceu aliviada por nos ver.
Falou alguma coisa no ouvido da mãe e nos puxou pra um lugar um pouco mais vazio.
“Ainda bem que vocês chegaram!”, ela falou dando um suspiro. “Não aguentava mais ter que ficar
cumprimentando essas pessoas todas com esse sorriso congelado no rosto!”
Eu imagino mesmo o quanto isso deve ter sido custoso pra Gabi. Ela é meio rebelde sem causa. Mora em um
prédio gigantesco, tem sítio, tem casa na praia, já foi para a Europa, Estados Unidos, Argentina... mas parece que
não fica feliz com nada dessas coisas. Cortou o cabelo de um lado mais curto do que o outro, fez um piercing no
nariz e vive usando umas roupas meio rasgadas, como se não tivesse dinheiro para comprar outras. Além disso,
fica participando dessas greves estudantis, reivindicando mensalidades mais baixas, como se ela precisasse mesmo
disso. A minha mãe disse que isso tudo é culpa da mãe dela, que está mais preocupada em aparecer nas colunas
sociais do que em dar uma boa educação pra filha, mas, se quer saber, eu acho que a Gabi tem uma ótima
educação e só se veste assim porque gosta de se sentir diferente. Além do mais ela tem quatro irmãs mais velhas,
todas supereducadas. Eu acho que falta de educação é ficar comentando da criação das outras pessoas...
Nós três nos sentamos na parte descoberta do salão, onde estava mais vazio e menos quente, ficamos
conversando, falando dos filmes que estrearam esta semana e qual deles merecia ser assistido, quando um garçom
ofereceu champanhe para nós. Eu dei uma olhadinha para a Gabi, pra perguntar se a gente devia, mas eu acho que
ela nem tinha dúvidas, já estava com a taça na mão. O Leo agradeceu. Eu fiquei meio indecisa, mas resolvi aceitar,
afinal que mal podia fazer uma tacinha só, ainda mais em uma festa familiar daquelas?
Aí a Gabi – que não é nem um pouquinho discreta – perguntou para o Leo como ele tinha feito para domar o
cabelo (que normalmente é todo bagunçado), e se a calça jeans dele finalmente seria lavada, já que era a primeira
vez que ela o via com outra roupa.
O Leo então ficou bravo. Começou a falar que o que a gente vê na escola é apenas uma faceta do Leo e que, se
nós pensávamos que o conhecíamos completamente, estávamos muito enganadas porque ele é um homem (o Leo,
um homem?) estratificado. Falou isso tudo e largou a gente lá, olhando uma pra outra meio sem entender o motivo
do stress.
Eu estava tão distraída pensando no que poderia tê-lo aborrecido tanto que nem reparei que o garçom também
tinha abastecido a minha taça.
Lá pelas tantas, cantaram parabéns, serviram o bolo e depois disso eu confesso que não me lembro mais de
nada direito. Só sei que o garçom ia e vinha, e continuava enchendo o meu copo e depois de um tempo eu comecei
a achar muita graça em tudo, e daí eu só me lembro da Gabi pegando o meu celular e falando para a minha mãe
que eu ia dormir na casa dela. Eu, realmente, não devia estar no meu estado normal, porque aceitei dormir lá sem
nem ao menos ter levado a minha escova de dentes. Pensando bem agora, será que eu dormi sem escovar os
dentes?
Eu resolvi acordar a Gabi para ela me explicar direitinho como eu tinha ido parar ali, na bicama do quarto dela.
Acho tão engraçado as pessoas que têm sono pesado. Eu, se cai uma pluma no chão, já acordo. Pois acho que
pode cair o prédio inteiro que a Gabi continua dormindo. Primeiro, eu chamei baixinho. Ela nem se moveu. Aí eu
falei mais alto. Nada. Apertei a mão dela. Ela se virou pro outro lado. Segurei-a pelos ombros e dei uma sacudida.
Ela resmungou. Aí eu falei o nome dela tão alto que o gato até miou. Nessa hora, ela abriu os olhos, olhou para
mim como se não estivesse me enxergando, virou um pouco o rosto e viu o Mignon do meu lado. Esticou o braço, o
agarrou, deu um abração que deve ter quebrado todos os ossos do pobre gatinho e fechou novamente os olhos,
voltando a dormir.
Eu olhei o rádio-relógio na cabeceira dela e descobri que já eram quinze pra meio-dia! Levantei, reparei que eu
estava vestida com uma blusa velha da Gabi e encontrei o meu vestido dependurado todo certinho em um cabide,
na maçaneta do quarto. Vesti, abri a porta e olhei ao redor. Ninguém à vista. Entrei no banheiro e quase caí pra
trás, ao ver o que tinha virado a minha maquiagem tão linda da noite passada. Eu só conseguia pensar: “O que
será que eu aprontei?”, enquanto lavava o rosto e tentava dar um jeito na minha aparência.
Saí do banheiro com cuidado, pra não fazer barulho, dei uma olhada em volta e percebi que a casa estava
completamente em silêncio, todo mundo devia estar dormindo ainda. Fui até o escritório e olhei pela janela. O dia
estava chuvoso. Resolvi que ia ligar para o meu pai me buscar, e, quando eu ia pegando o telefone, ele tocou. Eu
fiquei meio sem saber se atendia ou não, ele continuou tocando, eu comecei a ficar aflita imaginando que se a
família da Gabi estivesse mesmo dormindo ia acabar sendo acordada... então, num impulso, resolvi atender.
Eu falei “alô” baixinho e só ouvi silêncio em resposta. Eu ia falar de novo quando ouvi uma voz baixinha: “Fani?”.
Era a voz do Leo!
“Leo?”, perguntei só por perguntar, porque a voz do Leo é inconfundível.
E ele: “Já de pé? Achei que você fosse dormir até umas seis da tarde”.
Eu comecei a ficar preocupada com aquela situação. Como assim o Leo sabia que eu estava dormindo na casa da
Gabi? E por que eu deveria dormir até seis da tarde? Eu ia começar a perguntar isso, mas ele veio de novo: “Você
está bem, Fani?”.
Eu respondi que sim, fora o fato de que parecia que eu tinha perdido alguma cena importante da minha vida...
Aí ele riu! E disse que achava que eu realmente tinha perdido uma parte bem engraçada do filme. De repente,
falou que precisava desligar porque estava indo para o sítio com o pai dele, que só queria saber se eu tinha
acordado bem e que a gente conversava segunda-feira na aula. Segunda? Será que o Leo estava achando que eu ia
ficar com esse ponto de interrogação na cabeça até segunda?
Liguei para o meu pai, que por sorte estava saindo de casa e disse que eu já podia esperar na portaria. Escrevi
um bilhetinho para a Gabi e preguei no espelho do banheiro dela, desejando do fundo do meu coração que ela
acordasse logo.
Gabi, desculpe sair sem me despedir, mas eu não quis te acordar. Meu pai vem me buscar agora. Obrigada
por eu ter dormido aqui, mas será que você poderia me ligar e explicar como isso aconteceu? Acho que
estou com um lapso na memória. Me ligue assim que acordar, por favor!! Um beijo. Fani

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