capitulo 3

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Lucy: Você acredita em amor à primeira vista? Não, aposto que não. Você deve ser muito sensível para
isso. Ou já viu alguém e soube que, se aquela pessoa realmente conhecesse você, teria, é claro, se
livrado da modelo perfeita com quem estava e se daria conta de que você era a pessoa com quem
queria envelhecer? Alguma vez já se apaixonou por alguém com quem nunca conversou?
(Enquanto você dormia)

Eu não consegui acreditar que já era a hora quando acordei hoje cedo, aliás, quando eu fui acordada pela minha
mãe, já que o despertador cansou de tocar e eu nem escutei. Pra mim ainda era plena madrugada, eu precisava
dormir mais umas duas horas no mínimo! Lembrei-me do tal horário de verão e já me arrependi de ter elogiado
tanto.
Depois da saída a jato de domingo à noite, eu fiquei bem quietinha em casa durante o dia inteiro ontem. Vi uns
filmes na televisão, fiz o dever de Física, conversei no telefone com a Gabi, que ficou um tempão me contando
sobre a viagem dela pra Tiradentes, depois fiquei na internet até umas oito horas da noite, quando a Natália e a
Júlia (que tinha acabado de chegar de viagem) passaram aqui, perguntando se eu não queria ir ao cinema com
elas.
Não pensei nem meio minuto. Minha relação com cinema é meio sistemática. Eu sou louca por filmes. Foi paixão
à primeira vista desde a primeira vez que a minha mãe, quando eu tinha três anos de idade, levou o meu primo e
eu para assistirmos a Branca de Neve. Enquanto meu primo ficou chorando com medo da Bruxa Malvada, eu fiquei
rindo da cara dele, fascinada com aquele mundo até então desconhecido, cheio de magia, luzes, cores... e desde
aquele dia fiquei viciada. Atualmente, anoto e classifico cada filme que assisto com estrelinhas – uma para
péssimo, duas para mais ou menos, três para bom, quatro para ótimo, cinco para perfeito – e todos que ganham
cinco estrelas, faço questão de adquirir para o meu maior xodó, que é a minha coleção de DVDs.
Eles ficam enfileirados na minha estante, todos os 55 filmes que já tenho. Assisti a cada um deles tantas vezes
que cheguei ao ponto de quase decorar as falas. Inclusive anoto todas as minhas frases preferidas ditas por
personagens, e – na minha opinião – os melhores livros são os roteiros. A Gabi diz que isso é obsessão, mas o meu
pai falou que é um hobby até saudável, que, pelo menos, estou estimulando a imaginação e a criatividade. Mas eu
digo pra ele que isso não é apenas um hobby... é vocação. Juro que um dia ainda vou trabalhar com isso. Serei
diretora ou roteirista. Atriz não, porque sou muito tímida. Mas, com certeza, minha futura profissão está
relacionada com cinema.
Tem gente que chega dentro do meu quarto e acha que eu tenho uma locadora, já vem logo me pedindo um
filme emprestado. Digo não sem nem piscar. Não é egoísmo, mas tenho uma história com cada um desses DVDs, e
ver aquele buraco na estante me faz ter vontade de ligar de um em um minuto pra perguntar se o filme está
passando bem. Então, prefiro negar de cara, aliás, preguei um anúncio na estante:
"NÃO DOU, NÃO EMPRESTO E NÃO VENDO!
Mas você é bem vindo para assistir AQUI sempre que desejar"
Só que ver filme no cinema é diferente de ver na minha casa. Primeiro, porque as cadeiras – mesmo nas salas
mais modernas – são muito desconfortáveis! Quando eu consigo um jeito de sentar de um modo que o meu joelho
não bata na cadeira da frente, a pessoa de trás é que fica batendo o dela na minha. O ar-condicionado é tão gelado
que eu tenho vontade de levar um cobertorzinho na bolsa e me enrolar no meio do filme. Além disso, sempre tem
um cabeçudo na frente tampando a metade da tela. E fora os engraçadinhos que parece que vão ao cinema pra
ficar rindo, fazendo palhaçada para os amigos e jogando papel de bala no cabelo da gente! Então, sinceramente, se
a minha curiosidade permitisse, eu preferiria esperar o filme sair em DVD três meses depois e assistir deitadinha na minha cama, comendo brigadeiro, feliz da vida e sem interrupções. Só que eu nunca resisto. Tenho que assistir
ao filme na semana em que ele estreia no cinema, senão alguém inventa de contar o final e estraga a graça toda!
Então, ontem, acabei aceitando o convite das meninas (assistimos a Os irmãos Grimm – dei três estrelinhas), já
que ficar o dia inteiro em casa também cansa. Aí, até eu voltar, arrumar o meu material escolar e esperar o sono
aparecer, fui dormir quando já eram umas duas da madrugada. Ou seja, fui babando pro colégio hoje.
A primeira aula foi de Educação Religiosa. Eu estava lá, com a cabeça deitada na carteira, torcendo para
ninguém reparar em mim, quando alguma coisa bateu no meu cabelo. Eu levantei o olhar um pouquinho e vi que
era o Leo que tinha mandado a borracha em mim. Em seguida, mandou um bilhetinho.
Oi, Bela Adormecida! Como foi o feriado? Topa lanchar no Gulagulosa? Você não acha que a Irmã Maria
Imaculada está com cara de quem aprontou alguma no feriado? Você também está com cara de quem não
dormiu... a gandaia foi boa, né? É só eu viajar que vocês caem na farra! Arrumou algum namorado para eu
encher de porrada?
Ao que eu respondi:
Leo, se quer saber, realmente eu não dormi. Antes fosse por causa de gandaia. Insônia é o nome da minha
namorada, conhece? Mas, realmente, eu queria ver essa história de porrada... você não bate nem em bola
de basquete! Quero saber como estava o Rio. Pelo visto não tinha muito sol, né? Ok, vamos ao Gula.
P.S.: Acho que a Irmã teve que pagar alguma penitência nessa madrugada.
Os três horários até a hora do recreio se arrastaram. Eu e o Leo fomos os primeiros a sair da sala quando o sinal
tocou. Graças ao novo grêmio, podemos sair do colégio durante o recreio (ops, intervalo... o Leo me enche o saco
porque diz que ninguém mais fala “recreio” desde a quarta série) e não precisamos nos submeter àquela coxinha
gordurosa da cantina. Aliás, a cantina anda às moscas desde que abriu uma Gulagulosa aqui na frente, a melhor
lanchonete da cidade. O problema é que a gente perde metade do intervalo na fila e nunca consegue se sentar nas
mesas, que estão sempre ocupadas pelos alunos do terceiro ano que matam aula.
Mas hoje, por sorte, a Natália, a Júlia, o Rodrigo e a Priscila – que também são do segundo ano, só que da outra
sala – já estavam em uma mesa porque um professor faltou e eles tiveram o terceiro horário vago. O Leo, como
sempre, pediu tortinha de frango com catupiry e uma Coca grande. Não sei como ele não engorda. Eu fiquei com o
meu tradicional pão de queijo com guaraná diet.
A Natália fez todo mundo rir contando a nossa saga “táxi-horário de verão-táxi”. A Júlia jurou que nunca mais ia
deixar ninguém arrastá-la para o interior, porque lá não tem nada pra fazer e ela acaba perdendo uns programas
legais como os que eu e a Natália fizemos (acho que colocaram alguma coisa no refrigerante da Júlia, só pode!). O
Rodrigo e a Priscila – que namoram desde os 13 anos – também não viajaram e concordaram que a sessão de DVD
na minha casa foi o ponto alto do feriado. O Leo foi o que mais aproveitou, apesar da chuva que estava no Rio de
Janeiro. Ficou contando dos barzinhos, dos filmes que ainda não estão em cartaz aqui, e contou a maior vantagem
por ter visto a Luana Piovani no shopping. Ah, tá, morri de inveja, eu sempre quis ver a Luana Piovani no shopping.
A gente estava começando a falar da Gabi, imaginando o porquê dela não ter aparecido no colégio hoje, quando
o sinal bateu. Eu levantei correndo, porque a próxima aula era de Biologia! A Júlia, o Rodrigo e a Priscila nem
ligaram, mas eu vi que o Leo e a Natália se entreolharam, como se não estivessem entendendo o motivo da minha
pressa.
Entrei na sala e ele já estava sentado. Quando fui para a minha carteira, que fica na penúltima fileira, dei uma
olhadinha e ele estava olhando pra mim. Eu dei um risinho e ele disse: “Oi”.
Oi! Ele disse oi pra mim! Tá, ele poderia ter dito “oi, Fani”, mas um oi sozinho já é bom o suficiente!
Ele esperou o resto dos meus colegas entrarem na sala e começou a fazer a chamada. Quando chegou ao meu
nome, me olhou daquele jeito que ele me olha em todas as aulas – tenho certeza de que ele só olha assim pra mim –
e eu respondi um “presente” quase inaudível, uma vez que, como ele já havia me visto, eu não precisava gritar que
estava lá. Só que o Leo – que hoje estava sentado na minha frente – perguntou se o pão de queijo tinha me feito
mal ou coisa parecida, porque eu estava com cara de que ia desmaiar a qualquer momento. Chatão! Bem que podia
ter falado isso mais baixo. Aquela turma da Vanessa ficou toda cheia dos cochichinhos olhando pra mim.
A aula do meu professorzinho acabou, o último horário foi de Inglês, e o único inglês que eu estudei foi o da
minha atual música preferida, que rabisquei umas vinte vezes na última página do caderno...

“Young teacher, the subject, of school girl fantasy
She wants him, so badly, knows what she wants to be
Inside her, there’s longing, this girl’s an open page
Book marking, she’s so close now, this girl is half his age
Don’t stand so close to me…”
(The Police – Don’t stand so close to me)

Quando eu cheguei em casa, liguei correndo para a Gabi, pra saber por que ela tinha matado aula, justamente
hoje. A Gabi é a única que sabe da minha paixão pelo Marquinho e tinha que me ajudar a analisar o que ele quis dizer com aquele “oi” seguido da olhadinha...
Tem hora que eu acho que o Leo já sacou, eu tenho até vontade de contar pra ele, mas, por algum motivo,
sempre perco a coragem na hora de falar. Eu sei que ele não ia atrapalhar nem contar pra ninguém, puxa, o Leo é
o meu melhor amigo desde que eu mudei de colégio!
Na verdade, foi minha mãe que me mudou. Eu estava bem feliz e satisfeita no meu colégio antigo, e ela veio
toda: “Esse seu colégio não passa ninguém no vestibular! Vou te colocar no colégio da Natália porque a mãe dela
falou que o índice dele de aprovação é um dos melhores da cidade e que a Natália estuda o tempo todo! Como suas
notas são boas mesmo sem você pegar no livro, com certeza esse seu colégio é uma porcaria!”.
Porcaria é a cabeça da Natália que só fica pensando no Mateus a aula inteira! Por causa disso ela tem que tirar
o atraso em casa. E, por esse motivo, agora eu tenho que estudar em um colégio de freiras.
Não entendo isso da Natália gostar do Mateus! Ele é tão bobo e se acha o tal só porque passa cinco horas por
dia na academia! Claro, as pessoas não escolhem de quem elas gostam, mas a Natália até que poderia escolher...
ela é toda magrinha, lourinha, baixinha, e tem um cabelão lindo... os meninos chovem nela! Já eu, com esse meu
biótipo indefinido, passo até despercebida de tão sem graça. Fico imaginando as pessoas falando de mim: “Sabe a
Fani? Aquela meio... é... meio assim... hum... que tem... ah, aquela menina que tem um nome esquisito, sabe?”.
A Gabi – que não foi à aula porque precisava repor as forças gastas no feriado (e inventou pra mãe que estava
morrendo de cólica) – não me animou em nada quando contei pra ela da cena da aula de hoje.
“Puxa, Fani”, ela falou, “mas será que ele não fala esse ‘oi’ pra todo mundo? E essa tal olhada que você diz que
ele te dá na hora da chamada, eu acho que ele dá pra mim também... é pra verificar se é a gente mesmo que está
respondendo e não outra pessoa no lugar, caso a gente esteja matando aula...”.
Odeio a Gabi. Tudo bem que foi ela que resolveu ser minha amiga quando – por azar (ou por sorte, não sei) – eu
não fiquei na sala da Natália nessa mudança de colégio. Se dependesse da minha timidez, eu não ia ter amigo
nenhum até hoje. Aí a Gabi veio e me ofereceu os cadernos dela para eu entender o que estava acontecendo...
depois me contou sobre as panelinhas existentes na sala, e até foi ela que me apresentou ao Leo... mas não sei por
que ela tem que ser tão realista. Realista, nada! Pessimista, isso sim! Ela nem estava lá pra ver a tal olhadinha!
Tenho certeza de que ele demora o olhar em mim uns dois segundos a mais do que o suficiente para verificar se
sou eu que estou respondendo a chamada! E tenho certeza também de que ele só não olha mais pra não dar na
cara... E um dia ainda vou provar isso pra Gabi!

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