capitulo 53

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Anne: Eu acho que te conheço um pouquinho melhor que você pensa. E eu não quero que você
acorde uma manhã pensando que, se você tivesse conhecimento de tudo, poderia ter feito alguma
coisa diferente.
(Diário de uma paixão)

O aeroporto internacional fica exatamente a uma hora de distância da minha casa. Não parei de chorar um
minuto durante o percurso.
Meu pai perguntou mais de uma vez se eu queria desistir, mas eu só conseguia balançar a cabeça
negativamente. Eu não queria desistir, uma parte de mim queria muito fazer aquele intercâmbio, minha tristeza
era apenas por saudade antecipada de todo mundo e por frustração pelos meus planos terem dado errado com o
Leo.
Depois que ele saiu da minha casa, eu liguei pra Gabi no mesmo instante e abri o berreiro. Contei que ele não
compareceria ao aeroporto, que tinha ido à minha casa se despedir sem ter ouvido o CD e que, por um instante, eu
cheguei até a pensar que rolaria um beijo, mas que eu achava que tinha sido apenas impressão minha,
provavelmente era a minha vontade de que aquilo acontecesse que estava me fazendo ter alucinações...
Ela disse que não era pra eu me preocupar, pois tudo daria certo no final. Aí eu expliquei pra ela que o final já
tinha acontecido, e ela disse que tudo só termina na hora em que as cortinas fecham. Não entendi o que ela quis
dizer, eu estava com a cabeça explodindo de dor por causa da falta de sono e do excesso de choro, e então ela falou
que tinha que almoçar depressa pra resolver umas coisas antes de ir pro aeroporto.
O aeroporto. Normalmente eu adoro aeroportos. Gosto de reparar nas pessoas que circulam por eles, sempre
com sorrisos no rosto. A quantidade de abraços que acontecem nos aeroportos deve ser maior do que em qualquer
outro lugar. Abraços tristes de despedida e alegres abraços de chegada.
Mas, dessa vez, eu não gostei de avistar o aeroporto se aproximando. Em poucas horas, tudo estaria terminado,
uma nova vida começaria para mim, bem longe. Apesar da curiosidade e ansiedade para conhecer o que estava me
esperando, uma grande parte de mim pedia para que eu não inventasse moda e ficasse quietinha onde eu já estava
acostumada. Eu ficava tentando dizer pra essa minha parte que era tarde demais, que ela devia ter dito isso meses
atrás...
O meu pai foi estacionar o carro, enquanto eu, a minha mãe e o Alberto descemos para já ir entrando na fila do
check-in.
Foi só entrar no saguão do aeroporto que eu percebi que ia demorar um pouquinho pra conseguir chegar na tal
fila. O aeroporto estava lotado! Avistei alguns dos outros intercambistas que eu já conhecia dos encontros, todos
com o mesmo uniforme que eu – blusa branca, blazer azul escuro, calça cinza, sapato preto –, cada um deles com
uma penca de gente em volta, provavelmente amigos e familiares se despedindo.
Andei mais um pouco e vi várias pessoas da minha família me esperando. Assim que me viram, todas vieram ao
meu encontro. Confesso que esqueci a tristeza por um momento, parecia até que era meu aniversário, todo mundo
vindo me cumprimentar, alguns com presentes, outros com cartinhas...
Além da família, quase todas as minhas amigas que foram à festa surpresa estavam lá, mas a Gabi e a Natália
ainda não tinham chegado.
Terminei o check-in e vi que eu ia ter uma hora de espera antes do momento de entrar na sala de embarque.
Passei então por cada grupinho de intercambistas para cumprimentar e ver como eles estavam lidando com a
expectativa. Reparei que o rosto inchado não era privilégio só meu, muitas das meninas que estavam indo, também
estavam assim.
Resolvi ir ao banheiro passar um pouco mais de corretivo pra tentar disfarçar as olheiras devido à noite mal
dormida. Chegando lá, dei de cara com a Priscila penteando o cabelo.
“Oi, Fani!”, ela falou me abraçando. “Estava indo te procurar. Preparada?”
Eu disse que estava mais ou menos, que estava muito ansiosa para conhecer a cidade onde eu ia morar e a
família que ia me receber, mas que a saudade antecipada de todo mundo estava difícil de aguentar.
“Imagino”, ela disse sorrindo. Em seguida, ficou séria e pegou a minha mão. “Fani, eu queria te falar uma coisa,
aproveitando que a gente está sozinha.”
Eu olhei pra ela assustada, o que ela poderia querer me dizer, a sós, em uma hora daquelas?
“Olha só”, ela falou olhando em direção à porta do banheiro, “a Gabi me mata se ela souber que eu te contei
isso, mas eu não acho justo você não saber”.
Eu prendi a respiração. Alguma coisa tinha acontecido com a Gabi. Ela estava doente, era isso? Ia morrer?
“O que a Gabi tem?!”, eu perguntei alarmada.
A Priscila largou a minha mão e riu. “Nada, Fani, a Gabi está ótima!”
Eu suspirei aliviada e tornei a olhar pra ela, esperando então o que ela tinha pra me contar.
“O caso não é com a Gabi, e sim com o Leo.”
“O Leo está doente?”, eu quase gritei. “Por isso é que ele não vai vir ao aeroporto?”
“Ele não vai vir ao aeroporto?”, foi a vez da Priscila falar alto.
“Não, ele vai ter que trabalhar!”, eu respondi depressa. “Priscila, quer me dizer logo o que você tem pra me
falar? Estou ficando preocupada! E está todo mundo me esperando lá fora!”
Ela coçou a cabeça com uma expressão preocupada. “Fani, eu vou te contar uma coisa, mas eu quero que isso
não mude nada, tá bom? Você tem que me prometer que vai entrar naquele avião, fazer seu intercâmbio e voltar
feliz da vida daqui a um ano...”
“Fala logo!”, desta vez eu realmente gritei.
“Eu sei que não estou fazendo a coisa certa, mas seja o que Deus quiser”, ela disse baixinho com um suspiro.
“Fani, sabe aquele dia que você foi buscar o resultado do Leo no colégio?”
Eu afirmei, e ela continuou.
“O Rodrigo ligou para ele mais tarde, pra saber se você já tinha contado o resultado, porque ele também estava
curioso pra saber se o Leo tinha ou não passado de ano”, ela começou a relatar bem devagar, para não ter
possibilidade de eu ficar sem entender alguma parte.
“Só que o Leo deu uma bronca no Rodrigo. Falou que ele não tinha nada que ter pedido pra você pegar a nota
dele”, ela continuou o caso, atenta à minha reação.
“Por que ele não queria que eu pegasse a nota dele?”, eu perguntei, realmente sem entender.
“Aí é que tá”, ela disse, apontando o dedo para mim. “Eu perguntei a mesma coisa para o Rodrigo quando ele me
contou isso. E sabe o que ele me disse?”
Eu só fiz que não com a cabeça, morrendo de curiosidade.
“Ele disse que o Leo estava fazendo de tudo para não ter contato com você até o dia da sua viagem. Que ele
tentou não ficar muito próximo durante a recuperação, mas que você foi atrás dele e que ele acabou não
resistindo. Aí, depois, ele inventou essa viagem de tantos dias pro Rio só porque esse parecia ser o único jeito de
se afastar, mas acabou que foi você que pegou o resultado no colégio e aí ele teve que ligar pra você.”
Eu ainda não estava entendendo.
“Priscila, aonde você está querendo chegar?”, eu falei aflita, olhando pro relógio. “Por que o Leo queria se
afastar? Ele estava com raiva de mim? Eu fiz alguma coisa?”
Ela não disse nada, em vez disso foi até a porta e olhou pra fora, pra ver se tinha alguém chegando, voltou e
falou muito séria, baixinho, mas com firmeza.
“Fani, desde um dia depois da festa da nossa sala eu estou sabendo disso, eu queria ter te contado, mas o
Rodrigo ia me matar!”, ela disse meio envergonhada. “E depois, aquele dia, na sua festa surpresa, eu também quis
falar com você, mas a Gabi achou melhor que você não soubesse nessas alturas do campeonato, ela ficou com
medo de você desistir de viajar. Mas eu não posso deixar você ir assim, Fani, se fosse comigo eu gostaria muito de
saber!”
“Fala logo, pelo amor de Deus...”, eu implorei, sentindo que ia começar a chorar de novo a qualquer momento.
Ela fez uma cara de choro também, pegou minhas duas mãos e falou uma frase. Uma grande frase. Que explicou
tudo o que eu queria saber.
“O Leo gosta de você – quero dizer, gosta mais do que como amigo – e já tem muito tempo, mas nunca teve
coragem de se declarar porque ele achava que você não gostava dele do mesmo jeito e, segundo ele, entre não ter
nada e ter apenas a sua amizade, ele preferia ficar com a amizade!”, ela falou de uma vez só, me deixando com a
boca aberta e o coração apertado.
Como eu não disse nada, fiquei estática, ela apertou a minha mão e falou: “Fani, você está bem, né?”.
Eu respirei bem fundo, tentando ainda digerir a informação.
“Aí então”, ela continuou e eu fiquei pensando que eu não ia aguentar escutar mais nada, “naquele dia da festa
surpresa, quando eu vi a sua carinha de apaixonada olhando pra ele na televisão, eu percebi que o sentimento era
recíproco...”
Eu não aguentei mais e dei um abraço nela, caindo no choro mais uma vez. Não sei como eu não me desidratava
de tanto chorar.
“Calma, Fani”, ela falou passando a mão nas minhas costas. “Vai ficar tudo bem.”
Eu me afastei e falei pra ela que nada ia ficar bem, que já tinha ficado tudo mal, que eu tinha tentado fazer com
que ele percebesse gravando um CD, com músicas que entregassem meus sentimentos, mas que ele não tinha nem
escutado, já que tinha chegado de viagem em cima da hora e tinha ido direto pra minha casa para se despedir de
mim.
“Direto pra sua casa?”, ela perguntou franzindo a testa.
“É”, eu falei, “ele passou lá hoje antes do almoço e levou umas coisas pra mim... um CD, uma carta e uma flor. E
disse que ia ter que trabalhar com o pai dele hoje à tarde, motivo pelo qual ele não ia poder vir aqui.”
“Fani”, a Priscila falou com a testa mais franzida ainda. “O Leo não chegou hoje. Ele chegou ontem à noite. Eu
sei porque ele ligou pro Rodrigo já eram umas 23 horas, falando que tinha acabado convencendo o pai dele a vir
um dia antes pra não ter perigo de não dar tempo de chegar pra sua despedida, mas que ele não iria mais pro
aeroporto com a gente como tinha combinado porque ele queria ir de carro, já que depois talvez tivesse que ir
trabalhar. O Rodrigo ainda perguntou se ele não tinha medo de ter blitz na estrada, mas ele falou que ia pegar a
carteira do irmão dele, por via das dúvidas...”
Eu não estava nem prestando mais atenção. O Leo tinha chegado ontem? Mas por que ele mentiu, então? Por
que ele não me telefonou quando chegou?
“... por isso é que eu estranhei quando você me disse que ele não viria ao aeroporto. Eu estava certa de que ia
encontrá-lo aqui.” Ela terminou de falar, tão confusa quanto eu.
“Priscila”, eu falei, “me ajuda a pensar. Por que o Leo mentiria? Por que ele me disse que chegou hoje sendo que
chegou ontem? Por que...”.
E de repente tudo entrou na minha cabeça. O CD. O Leo com certeza chegou em casa, ouviu o CD, não gostou e
desistiu. Deve ter inventado essa história que vinha de carro só pra se desvencilhar da carona e não aparecer.
Eu falei isso pra Priscila, mas então ela disse: “Fani, isso não tem o menor sentido. Pensa comigo. Se você disse
que nesse CD tem músicas que supostamente fariam com que ele percebesse que você gosta dele, se ele também
gosta de você e se ele descobriu que o sentimento é correspondido, por que então ele não viria aqui? Ou mesmo
que fosse pelo motivo que ele falou, de ter que trabalhar – o que eu sinceramente acho muito improvável, porque o
pai do Leo nunca foi muito rígido com essas coisas –, por que ele não revelou isso tudo quando foi à sua casa? Por
que ele não falou pra você que ouviu o CD e que, já que você gosta muito dele e que ele gosta tanto de você, vocês
vão ser felizes pra sempre, daqui a um ano, quando você voltar?”.
Eu não consegui deixar de rir com a simplicidade com que ela tinha colocado os fatos. Como se realmente fosse
tudo tão fácil assim...
“Fani”, ela continuou. “Isso está parecendo um filme. Você deve estar esquecendo uma pista aí nesse rolo. Pensa
direitinho, você é expert em cinema! Alguma cena está faltando no meio desse enredo!”
Eu fiquei pensando e, de repente, tive uma luz.
A carta.
“A carta!”, eu falei, puxando ela pela mão para a gente sair do banheiro.
“Que carta?”, ela me seguiu, tentando desviar das pessoas que vinham no sentido contrário.
“A carta que ele levou à minha casa e pediu para eu ler só dentro do avião!”, eu respondi, começando realmente
a entender. “E tem também um CD! Como eu sou burra! Claro que ele chegou antes do Rio, afinal ele não teria
como ter gravado esse CD se tivesse ido direto me encontrar!”
E dizendo isso, fui correndo em direção à minha bagagem de mão, passando direto por várias outras pessoas
que tinham chegado para se despedir de mim.
Nenhuma despedida era mais importante naquele momento do que a que aquela carta deveria conter.

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