capitulo 24

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O Condutor: Algumas vezes as coisas mais reais deste mundo são as que a gente não pode ver.
(O Expresso Polar)
Só tirei os olhos da folha com os depoimentos na hora que a aula de Biologia começou. Mas, desta vez, não foi
por querer olhar para o Marquinho, e sim porque eu não queria que os nossos olhares se cruzassem nem por
acaso!
Apesar de tudo o que aconteceu, meu coração ainda bateu mais forte quando eu o vi entrando na sala, mas junto
com o ritmo cardíaco acelerado não veio aquela costumeira empolgação que eu sentia, e sim uma mágoa misturada
com raiva e vergonha por imaginar que ele devia estar com pena de mim! Quando o sinal bateu, eu e a Gabi já
estávamos com tudo na mochila e fomos as primeiras a sair da sala, para não ter chance dele puxar assunto.
A gente estava na porta do colégio esperando nossos pais, quando a Gabi me lembrou do jogo da aula de
Educação Religiosa e perguntou se eu realmente não estava curiosa pra descobrir quem tinha escrito cada
depoimento. Eu falei pra ela que estava um pouco, mas que, além de ser impossível saber quem tinha escrito o
quê, também não tinha jeito de distinguir o que era brincadeira do que era sério.
Ela então tirou a folha dela e me deu pra ler. Eu li. Quase todo mundo tinha escrito que ela era inteligente,
maluquinha e original, apenas mudando as palavras. Eu devolvi a folha e ela me perguntou se isso era mentira, ou
se parecia que alguém estava debochando dela ou fazendo algum tipo de brincadeira. Eu disse que não, que ela
era mesmo muito inteligente, tinha cara de doida e que eu realmente não conhecia ninguém mais original do que
ela.
“Pois eu também concordo com tudo o que li ao seu respeito”, ela falou. “Agora, quer fazer o favor de confiar
mais no seu taco e tentar descobrir quem é o seu admirador secreto?”
Nesse momento, o meu pai chegou. Eu me despedi da Gabi dizendo que ia telefonar para a gente terminar a
conversa mais tarde.
“Na hora em que você quiser”, ela falou, andando em direção ao carrinho de balas. “Eu já sei quem ele é
mesmo...”
Eu entrei no carro, olhei pra ela mais uma vez, mas ela já estava superentretida escolhendo um chocolate.
Cheguei em casa e, antes mesmo de almoçar, peguei a tal folha. Não sei por que, mas ela me acalentava, como
se fosse uma espécie de refresco, de alívio, um raiozinho de sol no meio da escuridão em que eu estava.
Li tudo novamente, tentando enxergar pelos olhos da Gabi. E se fosse verdade? E se as pessoas que escreveram
aquelas frases realmente sentissem algo a mais por mim? Peguei uma folha e anotei as que mais despertaram a
minha curiosidade:

Quer casar comigo?
Te adoro, menina! Pena que você não me enxerga.
É o amor da minha vida. O triste é que ela gosta de outro...

Não consegui chegar à conclusão de quem poderia ter escrito SERIAMENTE nenhuma das frases. Peguei uma
lista com os nomes de todos os alunos da sala, escrevi em outra folha só o nome dos meninos e comecei a analisar
um por um, tentando lembrar se algum deles algum dia tinha dado algum sinal de interesse por mim.

Alan – Super gente boa, mas a gente só conversa sobre assuntos escolares, no máximo sobre alguma festa.
Adriano – Tem namorada. E só fala “oi” e “tchau” pra mim.
Alexandre – Não conta, está com caxumba e não tem ido à aula por isso.
Bernardo – Tem namorada. E bonita.
Carlos André – Da turma do fundão, já trocamos uns bilhetinhos, mas acho que ele gosta é da Gabi, vive
enchendo o saco dela.
Daniel – Namorado da Camila da outra sala.
Erick – Sem chance. Gay assumidíssimo!
Ernesto – Nunca conversei na vida. Aliás, acho que ele é mudo.
Guilherme – O cara mais lindo do colégio inteiro. E o mais metido também. Nunca ia dar bola pra mim, uma
simples mortal...
Juliano – Do fundão também. Bonitinho e gente boa, já conversei com ele várias vezes... mas o assunto
sempre foi a namorada dele que está fazendo intercâmbio na Espanha...
Laerte – Da turminha dos CDFs. Nada a ver! Ele nunca olhou pra minha cara, nem nas pouquíssimas vezes
em que conversamos.
Leonardo – O Leo. Acho que está bem óbvio que o tipo de mulher que ele gosta é o meu oposto: loura, chata
e metida a besta! Gostaria tanto de ver o que ele escreveu pra Vanessa na folha dela...
Lucas – Se o cumprimentei algum dia na vida foi muito. Senta do outro lado da sala. Marcus Vinícius – Bonitinho e ordinário. Não iria me mandar indiretas escritas, ele canta todo mundo é na
cara dura mesmo.
Paulo Roberto – CDF também. Já pedi o caderno dele de Física emprestado umas duas vezes. Ele
emprestou. Mas pediu pra eu não devolver com marcas de gordura!
Renato – Não foi à aula. Então não escreveu nada, portanto não conta.
Rodrigo – Vive pros lados da turma da Vanessa. Deve ter antipatia de mim também.
Vladmir – Todo mundo sabe que ele vai ser padre. Inclusive a Irmã Imaculada está começando a prepará-lo
para o Seminário.

Ou seja, muito óbvio que nenhum deles escreveria a sério nenhum dos três depoimentos que eu anotei. O que
me faz voltar à minha hipótese original: estão rindo da minha cara.
Foi isso que eu falei pra Gabi quando liguei pra ela depois do almoço. Li todas as análises que eu fiz sobre cada
um dos meninos e ela começou a rir: “Pra alguém que está só um pouco curiosa, até que você está fazendo muito
esforço... pena que é desnecessário, já que a verdade está na sua cara e você insiste em não ver!”.
Eu fiquei com vontade de desligar o telefone, mas contei até dez, respirei fundo e perguntei já sabendo a
resposta: “E que verdade é essa?”.
Ela deu um suspiro e falou: “De novo? Quantas vezes vou ter que te falar que está muito claro que foi o Leo?
Leia de novo pensando nele, você vai ver que consegue até escutar a voz dele por trás das palavras!”.
Dessa vez quem riu fui eu: “Gabi, minha querida, acho que você está cometendo um deslize nessa sua lógica
perfeita… não é apenas um recado intrigante. São três!”.
Ela deu outro suspiro e perguntou: “Você por acaso leu sua folha de depoimentos direito?”.
Ela nem me deu tempo pra responder e já continuou: “Lógico que não. Tem um detalhe óbvio que foi a primeira
coisa que eu reparei, mas claro que você não tem espaço nessa sua cabeça sonhadora para questões práticas”.
Eu não estava entendendo do que ela estava falando. Fiquei calada, ela também, e aí, depois de um tempo, ela
falou: “Fani, quantas pessoas tem na sala?”.
Eu, que estava com a lista dos alunos em cima da minha escrivaninha, conferi e respondi: “38”.
“Você não escreveu pra você mesma, né?”, ela perguntou, e eu, começando a entender um pouquinho da lógica
dela, disse que não.
“Então sua folha deveria ter 37 depoimentos”, ela explicou. “Quantos tem?”.
Eu peguei a folha correndo e tomei um susto.
“Trinta e oito! Você acha que alguém escreveu duas vezes?”
Ela deu um risinho e respondeu: “Acho que alguém escreveu quatro vezes! Por acaso você viu o Renato e o
Alexandre na sala hoje? Ou você acha que mesmo matando aula algum deles pode ter escrito, por exemplo, por
telepatia?”.
Eu ainda estava assimilando a nova informação e ela falou: “Quando seu raciocínio lento chegar à conclusão de
que todas as pistas apontam para o Leo, você me liga de novo… beijo, tchau”.

Fazendo meu FilmeOnde histórias criam vida. Descubra agora