A fumaça espessa escapava entre os lábios a cada suspiro carregado, naquele início de noite já não se ouvia barulhos vindos das outras repartições do trem. As pernas longas acabavam desnudas com o tecido do roupão caído de lado, enquanto estava sentado na porta escancarada do vagão amarelo. Dentro dele, ainda estavam suas roupas ensanguentadas, e conseguia sentir o cheiro muito facilmente.
Sua mão latejava pela dor, e para um organismo que absorvia medicamentos como água não adiantaria nem ir até a capital e se matar numa fila para ser atendido num dos hospitais nojentos da cidade tão bem vista. Não é como se tivesse um vasto leque de opções, e ainda que sua carne estremecesse pelo frio queria pensar um pouco, sozinho.
Naturalmente, seus olhos seguiram o caminho em linha reta na direção da outra extremidade do trem. Talvez alguém estivesse tostando madeira na locomotiva.
Ele piscou antes de suspirar e baixar a cabeça para descansar. Um mau hábito só pode ser curado com um ainda maior, é o que ele acreditava.
O hábito de sentir demais, pelo de reprimir. O de falar demais, pelo de pensar demasiado.
— ... Áster?
Uma pessoa pela outra.
— Pensei que estivesse dormindo — Jade continuou falando, ao chegar perto, depois de descer do segundo vagão ao lado.
— Estou fumando.
O outro baixou os olhos verdes para mão esquerda, tão coberta quanto a outra pelo tecido do roupão — O cigarro já está apagando... Como está aturando a dor?
Ele ergueu um dos cantos da boca preguiçosamente — Não estou. É pra isso que o cigarro serve, não?
Então ele estava chapado, mas não parecia um cigarro convencional, de nenhum dos tipos que Jade conhecia — Parar de apertar a mão ajudaria, eu posso refazer o curativo.
— Eu sou mais velho que você, sei me cuidar — Argumentou ao se levantar e entrar no vagão amarelo, agitando o longo tecido sobre o corpo.
Jade ia deixar de lado, mas não conseguiu se conter ao segui-lo para o lado de dentro — Tanto sabe que estava no meio de um lugar abandonado, e quase caiu de um precipício de escombros, me deixe ver, eu entendo do assunto.
— Em três dias vai estar curado mesmo que tenha um buraco. Eu sei muito bem como fazer um curativo.
— Você é destro e machucou a mão direita ao ponto dela estar tremendo agora, não seja mais teimoso e tire essa bendita luva, ou eu vou ter que falar com Celeste sobre como você não se cuida direito.
O rosto de Áster se contorceu, mas dessa vez não foi de dor. Celeste tinha muito conhecimento, mas os remédios dela realmente tinham o gosto da morte, e não era como se passasse depois de engolir, pareciam sempre impregnar na língua ao ponto de tirar o sabor da comida que ele comia depois também.
— Sua mão, Áster.
— Por que você está fazendo isso comigo... — Ele resmungou apontando para o outro, no entanto parecia que estava prestes a chorar ou coisa do tipo — Você disse que não estava tentando me controlar.
Jade olhou para ele por um momento, vendo aquela reação que devia ser por conta da dor de literalmente rasgar uma parte do corpo, mas mesmo assim ele não parecia estar pronto para dar o braço a torcer.
— Eu tenho uma ótima ideia para evitar que os brinquedos sejam uma propaganda pro Candace nesse fim de semana. Vamos falar sobre isso enquanto resolvemos o problema com sua mão. Eu sei mais ou menos o que estou fazendo, eu prometo, já estudei alguns livros de medicina e também aprendi primeiros socorros no meu antigo emprego. — O mais novo argumentava, e quando o de cabelos longos se deu conta já tinha recuado até estar contra a parede do vagão, sendo perseguido por Jade de perto que parou bem diante dele — Ou podemos pedir pra Quimera.
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A Queda de Áster
Fantasy18+ Áster é um mágico e ilusionista trambiqueiro de primeira linha que viaja com seus amigos de volta à sua antiga cidade com o circo, o Arcana, no entanto suas intenções vão além de fazer apresentações e shows. Quando um objetivo obscuro assombra...