24: Linha entre amigos e inimigos

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Michel se aprumou ainda mais na cadeira. Estava tendo aulas com aquela mulher, e eram terríveis toda vez, porque não entendia muitas coisas ainda. Mas era a voz de Santiago Arabel era a que fazia sua mente produzir reações mistas, quando chegava no fim dessas reuniões, vestindo seu jaleco.

Antes, vinha a esperança de que ele deixaria que visse sua mãe de novo, já que estava sendo obediente e não chorava, como foi ordenado, quando ela arrumou suas coisas e brinquedos, e um carro veio buscar os dois na fazendinha.

Quando as coletas de sangue começaram, e seu braço passou a ficar manchado e dolorido, seu coração acelerava de uma maneira negativa, quando ouvia a voz do homem se aproximando no corredor de seu quarto.

E agora, ambos os sentimentos estavam presentes, mas havia um terceiro. Desconhecido.

O que doutor Arabel iria pedir nem sempre era algo que Michel pudesse adivinhar ou entender. Ultimamente ele além de vir com objetos, fones de ouvido, rádios, televisão e outros aparelhos pedindo que ele movesse, mudasse de canal ou sintonia sem usar as mãos, ele passou também a vir com livros e cadernos, apenas sentando na cadeira no quarto de Michel e o observando por horas em silêncio.

Até mesmo brincar de boneca, carrinho ou colorir nos cadernos tornou uma atividade monótona e automática, nas quais ele olharia de soslaio para o lado até por um suspiro que o médico desse, parando de mover a mão com um susto, ou continuando a colorir sem nem realmente se divertir no que estava fazendo.

O sentimento que pairava em seu peito era desconhecido para ele, até conhecer aquele homem.

Não tinha por que ter medo da própria mãe, ela era sempre cuidadosa e sempre lhe explicava o motivo de tudo quando ele perguntava sobre a escuridão, animais na floresta ou pelos raios cortando o céu e retumbando em trovoadas à noite.

Mas aquele médico com o nome Arabel bordado no jaleco nunca lhe explicou nada de maneira que pudesse entender, ele parecia distante demais.

Mova o copo sem usar as mãos, me diga o que eu tenho na mão sem olhar, ligue a televisão sem se mover dessa cadeira.

Faça o impossível, basicamente.

"Por que?"

Se ele perguntasse, fosse ignorado, e aquela mulher loira chamada Elisa estivesse por perto, teria que esticar as duas mãos para receber uma palmada de uma régua de madeira, porque "criança não tem que escolher, perguntar ou saber de nada." E quase todos os dias, uma amostra de seu sangue seria retirada, suas mucosas e olhos seriam analisados com uma lanterna, assim como qualquer arranhão que tivesse, a cicatrização que não levava muito tempo seria acompanhada minimamente.

— Muito bem pela sua evolução de hoje — Elisa disse, antes de se levantar da mesa, e era exatamente o que ela dizia todos os dias antes de sair, independentemente do que realmente fizessem.

Ele nunca tinha visto o sorriso de Santiago antes, mas naquele dia ele parecia especialmente irritado quando passou a mão pelos cabelos castanhos, realinhando o jaleco — Você tem que ir até um orfanato hoje, para passar tempo com outras crianças — Ele anunciou, naquela tarde.

Michel piscou os dois olhos, ainda parado no lugar, sem entender. Ver outras crianças? Assim como fazia quando saíam da fazenda e desciam para a cidade, ver as noites de festival no centro?

Mas fazia tanto tempo... Ele nem podia contar os dias mais nos dedos, como fez no início, porque precisou repetir as mãos várias e várias vezes, que iam além de sua habilidade de contar, até que se perdesse.

Ele se levantou, recebendo uma mochila para colocar nas costas, saíram de seu quarto cruzando os corredores e a sala com porta corta fogo da câmara de ar, e como sempre, quando andava lado a lado com Arabel, ele apoiava a mão em sua cabeça.

A Queda de ÁsterOnde histórias criam vida. Descubra agora