Moisés

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Capítulo 46

No sítio...

A colheita se findou.
Logo ao chegar a alva, Damião irá até à vila para fazer a venda do café colhido.
Oracio e Bidú estão preparados para a partida, como foi combinado, receberam o pagamento pelo trabalho e aproveitarão a carona na carroça.
Na cozinha da casa dona Alma conversa com Ayana sobre o estado de Catarina e conta algo que deixa a mulata pensativa.

- Penso que não tarda o dia do parto de Catarina.
- Verdade, a barriga já desceu e os pés estão inchados...
- Pobre da minha menina, esses meses foram um suplício para ela, se ao menos tivesse surtido efeito os abortivos que dei a ela, não teria que passar por esse parto, nem veria a cara desse diabinho que vai nascer!
- Dona Alma, não diga isso!
Mesmo essa criança tendo sido gerada contra à vontade da menina, ainda é um anjinho inocente.
- O filho daquele negro endiabrado não pode ser um anjo!
- Toda criança é inocente, a culpa é daqueles que sabem o que é errado e mesmo assim o faz...
Olhe para meu filho, sofri a mesma violência que Catarina, e o amo.
Olho para ele e vejo um anjinho branco e inocente, sei que não foi do meu desejo deitar- me com o pai, mas ele não é culpado pela maldade daquele ser humano.
- Posso até te entender...
Seu filho é branco, mas o dela será um negrinho e o mundo vai julga- lá e condena- lá.
Ela é uma Criança, tem que ter uma chance de ser feliz um dia.
- Sinto que a senhora pense assim, não importa a cor da criança, sempre é um ser inocente que vai sofrer pela monstruosidade do pai!
- Ayana, vou lhe contar algo que aconteceu faz muitos meses
Quando o Gabrielzinho era um recém nascido.
O Senhor Samuel mandou um capanga aqui para perguntar se o seu filho havia nascido.
- O que?! Como não soube de nada?
- Acho que você estava no rio.
E eu disse que o negrinho havia nascido.
Ele deve ter imaginado que seu filho era negro.
- Ele não pode saber que meu filho é branco, por favor!
Ele vai nos matar...
Ele matou meus três filhos e meu marido, ele sim, é um monstro bem maior do que foi o Mané!
- Por isso não disse nada, imaginei que ele quisesse, de alguma forma se livrar de você e do bebê.
- Mas ele me vendeu para vocês, porque veio atrás de mim?!
- Agora que você não é mais escrava, posso te dizer:
Ele não a vendeu para nós, pagou para cuidarmos de você.
- Não entendo...
O que ele queria com isso?
Sei, ele queria ferir meu amado Leôncio, mas se já o matou, porque fica me vigiando?!
Ele é mesmo um monstro, um verdadeiro belzebu em forma humana!
Vou te contar um segredo, dona Alma.
Te peço que não diga a ninguém, por nada nesse mundo!
- Sabes que não direi, eu juro!
- O Gabriel é filho do senhor Samuel.
Ele me forçava em seu quarto, dona Beatriz, minha amiga, chorava e pedia-lhe para não faze-lo, porém ele não parava e ria da dor que causava a esposa e a mim.
Ele falava em meu ouvido, na hora do ato, que me amava e que iria me tirar de meu marido...
Quando minha barriga começou a crescer, ele não mais me tocou, dizendo que o filho era do Leôncio.
No dia em que matou meus filhos, ele mirou sua pistola em minha barriga, porém não atirou; pensou que o filho poderia ser dele... pelo menos, é o que pude imaginar.
- Pobre Ayana, você já sofreu muito em sua vida...

Às mulheres continuam conversando e Não percebem quando Catarina sai pela porta da sala rumo ao rio.
A lua está crescente.
Os sapos e grilos fazem seus barulhos costumeiros.
Catarina caminha com dificuldade, está sentindo uma dor forte no pé da barriga, ela geme com a dor que vem e volta de tempos em tempos.
Ela senta-se à beira do rio que está deveras raso pela escaces de chuva.
A bolsa (saco amniótico) se rompe; as contratações se intensificam; O bebê está pronto para nascer...

Na casa...
As lamparinas são apagadas.
Dona Alma não percebe que Catarina não está em sua cama.
Todos dormem, aguardando o amanhecer, pois será o dia da venda do café e a partida dos escravos.

A jovem segura a barriga à cada contração, que estão cada vez mais próximas...
A Menina se contorce e geme baixinho para não ser ouvida.
Entre uma contratação e outra... Catarina olha os juncos que balançam à beira do rio, seus olhos estão cheios de lágrimas ela olha para o céu repleto de estrelas... a lua está quase cheia; o que ofusca o brilho das estrelas, mas mesmo assim:_elas estão lindas _ pensa Catarina.
Ela pede a Deus forças e se encolhe por uma dor aguda que atravessa suas costas e termina embaixo de sua grande e rígida barriga.

Mesmo não sabendo o porque, olha para os juncos e lembra-se da história de Moisés, a qual seu pai lhe contou em uma noite de família reunida...
Os juncos; a dor...
O sangue escorre-lhe pelas pernas, ela despe-se e entra nas águas frias do rio.

A dor é insuportável, todavia, ela não exprime nenhum som.
Engole o choro e respira profundamente...
Não passa nem um minuto e a dor rasga-lhe a alma.
Ela fica de cócoras e as águas rasas da beira do rio taca-lhe à cintura.
Tocando suas partes íntimas sente que o bebê está coroando, com as duas mãos ampara a cabecinha do bebê e ele salta para a vida.
Mais uma contratação e seu útero está limpo.
Ela levanta-se e caminha para águas mais profundas...
O mulatinho geme e se movimenta em suas mãos.

Catarina o segura sobre as águas e com lágrimas torrenciais em seus olhos,
respira profundamente, entre soluços silenciosos e uma dor cortante em seu coração de mulher quase menina; abre às mãos e vê a criança afundar.
Fecha os seus olhos, os abre novamente... olha mais uma vez a criança emergir  e logo após submergir...
Sente como se duas mãos agarrasse sua garganta, o grito oprimido que está em seu peito não consegue sair, alguns segundos lhe parecem uma eternidade.
Suas pernas parecem lhe que estão acimentadas no fundo do rio; ela faz uma força descomunal, vira às costas, e arrasta-se até à beira do rio, se lava, veste seu vestido e caminha lentamente até seu quarto, onde deita sobre sua cama e adormece.

Maria Boaventura

Espinhos da LiberdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora