Desgarrados

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Soube que tem gente sentindo falta de uma certa freirinha...

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Você já foi tocado por um anjo?

Poderia perguntar na verdade, se acredita na existência de anjos, mas caso tenha chegado até este ponto da história (que na verdade mal começou), tem a certeza de que pelo menos o "anjo da madrugada" existe.

Irmã Imaculada caminha pela noite, ignorando os perigos dos lugares fechados, dos silêncios interrompidos por gritos e estampidos, ou dos carros que saem em alta velocidade assustando os moradores de rua, munida da inseparável bolsa de couro, as sacolas com marmitas e a fé. De olhos fechados, muitas vezes, rezava pai-nosso e ave-maria em busca da proteção necessária para fazer o certo. Cumprir sua missão.

A missão, por vezes, era dura, e seu corpo por vezes não era capaz de aguentar o peso das tensões da madrugada. Mas ela resistia. Sua vocação era ajudar o outro, cuidar dos miseráveis os quais ninguém olhava.

"Obrigado, anjo", "Deus te abençoe, anjo", a cada quentinha entregue com uma palavra de conforto. "Como estão suas costas? Posso verificar um abrigo onde possa dormir...", "O posto funciona 24 horas, Clarice, cuide de seu bebê...", eram muitas de suas respostas, sempre no mesmo tom doce, gentil, comovido. A voz dela tinha música e gentileza. Não alterava a voz, e tinha até certo humor.

Os mendigos idosos eram encantados pelo anjo de tal forma que pareciam enxergar na irmã Imaculada uma santa. Em seu rosto, perfeitamente visto e envolvido pelo véu branco, cujo contraste com sua pele negra a fazia um quadro barroco, repleto de emoções em seu olhar, eles sentiam estar mais perto do paraíso.

⁃ Irmã, não precisa lavar meu pé, tem bicho...

⁃ Sr. Otávio, como quer caminhar pela rua se os pés doem? Trouxe até uma sandália na bolsa que recebi de donativos e acho que pode caber no senhor.

⁃ Meu Deus... Há quanto tempo não calço sandália... Eu nem me lembro mais, irmã...

⁃ Por isso, eu preciso lavar seu pé, ver as feridas, recuperar, para que o senhor calce a sandália com o maior conforto possível, tudo bem?

Enquanto lavava cautelosamente os pés de Otávio, que um dia foi porteiro de um prédio, mas ao perder o emprego, não tinha mais como pagar as contas e o tempo de trabalho não era o suficiente para garantir a aposentadoria, viu-se na rua sem perspectivas. Apenas não cedeu às tentações da bebida e da droga porque encontrou seu melhor amigo, um cachorro - que chamou de Rex - e tinha o apoio da freira, tão cuidadosa com ele quanto com os outros mendigos que ficavam na marquise, ali na Rua Carlos Gomes.

⁃ Fico triste que os abrigos não aceitem cachorros, mas... Posso verificar um lugar, um quartinho, que aceite...

⁃ Difícil, irmã. Ninguém quer que eu fique com Rex. Eu não posso não... Família não se abandona.

A religiosa sorriu, mas havia uma tristeza em seus olhos que não estava relacionada à fala de Otávio. O senhor, alguns bons anos mais velho que ela, percebeu.

⁃ Eles não eram família, irmã.

⁃ Eu achava que era. - parecia que Imaculada era a pessoa a ser cuidada e protegida naquela situação. A memória que ela deixava apagada surgiu novamente. - Eu tinha cinco anos. Descobri que não era. Um dia, Sr. Otávio, entendi que família não se garante por nascer dentro. Nós escolhemos os nossos. O senhor, as pessoas que moram aqui, quem precisa de mim, além das freiras do convento. Todos são minha família.

⁃ E Rex! Rex gosta de todo mundo! - os dois riram.

⁃ Particularmente não. Ele olha pra todo mundo preocupado... - o cachorro, um vira-lata caramelo, mantinha-se ao lado de seu tutor como se o protegesse de tudo. E Imaculada sabia: ele o faria.

O Leão e a OvelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora