Cristais quebrados

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O que você faria se encontrasse uma pessoa que te afeta tanto a tal ponto que não conseguiria controlar os próprios sentimentos?

Não creio que deve ser fácil para irmã Imaculada ouvir a voz da tentação fisicamente manifestada que era Leon Santiago. Creio também que não devia ser tranquilo para o próprio Leon oscilar entre ignorar a presença da freira e prosseguir com a sua provocação. De fato, ele queria descobrir até onde poderia chegar no que se referia à Imaculada; e ela, que em tese deveria evitar qualquer indisposição com o misterioso homem, encontrava-se estranhamente curiosa em saber o que ele fazia na ocupação.

Já que sou a pessoa que narra a trama, os interesses desses personagens também acabam sendo os meus. Vamos dizer que eu gosto dessa dinâmica e estou bem curiosa para saber onde ela vai parar.

- Olá, Sr. Leon. Boa noite... Como o senhor está?

- Como dizem os crédulos, "o senhor está no céu". Eu tenho um primeiro nome, Imaculada.

- Prefiro tratá-lo assim.

- Pena, odeio essa formalidade chata. – levantou-se em um salto e caminhou até a religiosa, que segurava uma sacola grande, cheirando a comida. Sem pedir licença, ele tomou a sacola das mãos da jovem, compreendendo se tratar de uma marmita:

- Essa quantidade dá pra todo mundo?

Imaculada percebeu na hora que não havia ironia em sua pergunta. Sem malícia, duplo sentido, ela aliviou-se. Era possível lidar com as emoções desencontradas que faziam seu coração bater descompassado toda vez que encontrava aquele homem.

- Sim, sempre trago a quantidade certa.

Aos poucos, os dois foram entregando as marmitas ao pessoal da ocupação. Imaculada notou ainda a grande quantidade de cestas básicas no ambiente da cozinha coletiva, que ajudaria a alimentar o grupo por um bom tempo. Dessa forma, decidiu que conversaria com Jéssica sobre a possibilidade de segurar um pouco a entrega das marmitas; porém, conversaria com Manuela antes.

- Eu não me lembro de ter visto ninguém entregando esses mantimentos por aqui...

- Foram alguns conhecidos, não se preocupe.

A conversa agora era no alto do prédio, o terraço onde ficavam os varais e as lavanderias, espaços onde o pessoal da ocupação lavava e secava as roupas. Eles podiam ver a Baía de Todos os Santos em boa parte de sua extensão; um pouco mais distantes as luzes acesas de Itaparica e da orla de Mar Grande, na Ilha; um pouco mais à distância, outras regiões limítrofes com o Baixo Sul. Do lado direito, a rua Chile, a Praça da Sé; e do outro lado, as luzes da Avenida Sete, e outras lâmpadas mais nubladas, indicando a Praça da Piedade.

Os prédios à frente estavam todos às escuras: eram edifícios empresariais. Apenas ficariam visíveis no dia seguinte.

O som que intercalava as conversas entre eles era uma mistura das músicas românticas que tocavam no prédio, as sirenes da polícia e das ambulâncias, das pessoas que falavam e gritavam na rua.

- Essa vista é espetacular. Confesso que eu não curto muito o centro, mas isso aqui é outro nível.

- Por que o senhor não gosta do centro?

- Não tenho uma opinião formada. Eu gosto demais de minha vizinhança, do lugar onde nasci e me criei. Eu acho o centro um charme, mas nunca me apeteceu tanto quanto os meus colegas da faculdade.

- O senhor estudou o quê? - era o primeiro momento desde que os dois se conheceram em que havia espaço para perguntas simples, conversas comuns. Imaculada percebia uma leveza naquele homem que não combinava com suas roupas pretas e a expressão sempre taciturna.

O Leão e a OvelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora