Missionária

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Este capítulo tem alguns flashbacks.

Fiquei com vontade de voltar ao passado; mas tanto a um passado de alguns instantes quanto aquele que está guardado no mais profundo da alma humana, enterrado para que seja esquecido.

Comecemos pelo passado recente. Do homem encapuzado que salvou a vida de irmã Imaculada, atirando de maneira perfeita, um tiro certeiro em cada atacante, para depois jogá-los em um carro.

Justamente o mesmo carro que conduziria a freira para sua morte - o destino preparado pelo cafetão Rubem e as figuras nefastas que se uniram a ele para destruir a religiosa - foi o veículo que os levaria ao destino incerto, preparado pelo encapuzado.

O misterioso homem desferiu mais três tiros para incapacitar o grupo, ali mesmo dentro do carro, enquanto dirigia em alta velocidade: todos no braço.

⁃ Quem é você, desgraça? - Rubem ainda tinha força para gritar; até tentou se aproximar do homem misterioso, mas ele, sem sequer olhar para trás, apontou a arma diretamente para a cabeça do cafetão.

⁃ Se aproxime e morre. - a voz, abafada pelo gorro, nada dizia.

⁃ Atira então, sua miser-

Rubem não iria morrer; o encapuzado não gastaria bala com uma criatura daquelas. Seu maior crime fora cometido no passado, matar ocorrera lá atrás. O máximo que ele fez foi atirar na direção da orelha de Rubem, que gritou de dor, assustando os outros homens do grupo, que oscilavam entre gritar, desesperados, e tremerem de medo do encapuzado. O homem que conduzia o veículo tinha um objetivo, e o cumpriria sem pensar duas vezes.

Já o encapuzado parecia acostumado à morte, ao sangue. Porém, era apenas aparência; porque ninguém reparou as mãos trêmulas no volante, a respiração abafada por dentro do capuz. A vontade de se lavar por completo, de se purgar de quem era, da pessoa violenta que se tornou.

Sua mãe não queria que ele fosse como os bandidos que rondavam a vizinhança, o bairro. Para protegê-la e às mulheres que amava, ele precisou ser, ele se tornou como eles, mas a mãe jamais soube. Não queria desagradá-la, decepcionar a sua única família. Mas precisou fazê-lo, e jamais se arrependeu.

O resto - os arroubos violentos, a vontade de agredir o mundo - ele nunca se orgulhou. Mas o mundo foi cruel, quis dobrá-lo. Ele precisava ir de encontro, desafiar quem queria vê-lo humilhado, ajoelhado.

Agora... Tudo era diferente. Não estava ali para proteger sua mãe, mas a mulher que circulava de branco pelas madrugadas era boa e gentil, inocente, que só queria o bem - só via o melhor das pessoas. Curiosamente, parecia ver algo bom nele. "Irmã, há muito tempo eu não sou uma boa pessoa." Mas Imaculada não precisava saber.

Ao mesmo tempo, existia a vontade, a urgência dentro dele, em provocá-la, fazê-la chegar ao limite, confrontar suas sensibilidades. O primeiro encontro foi daquela forma, e ele queria revê-la justamente para que a freira caísse em tentação. Se fosse para o anjo se render, ela deveria se render a ele - e ninguém mais.

Sorriu com as possibilidades. Dirigiu o carro por mais alguns quilômetros, agora em algum ponto do Comércio, e ao chegar em uma rua atrás de um prédio em frente à praça Visconde de Cayru, onde se localizava o Mercado Modelo - um dos principais pontos turísticos de Salvador – saiu do carro, com os bandidos em estado de choque e dor.

Em nome de sua mãe, matou no passado. Mas em nome da irmã Imaculada, tentaria por um instante ser a pessoa boa que ela enxergava nele, que sua mãe sempre sonhou que fosse.

Trancou a porta, travando tudo e impedindo a saída dos homens, que batiam no vidro com o corpo, desesperados, enquanto em meio à madrugada silenciosa, entrecortada por sons distantes de música e risadas, o encapuzado caminhou com rapidez até uma estação de bicicletas, já com o celular na mão, o aplicativo para aluguel dos modelos já com a bicicleta selecionada. Clicou e olhou para todos os lados, preocupado com alguma aparição surpresa.

O Leão e a OvelhaOnde histórias criam vida. Descubra agora