Capítulo 15

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É incrível como Raissa sempre teve esse discurso de menina sofrida e abandonada pela mãe que só se importava com seu próprio vicio. Lembro de quando aos dezesseis anos saiu algum boato de que ela era amante de um dono de mercadinho e eu fui obrigada a sair do meu trabalho para nos justificar perante a mulher do homem, que ela era uma garota traumatizada pelo que viveu. Lembro das palavras daquela mulher até hoje, quando disse que minha irmã não valia nada e que mesmo me tendo como exemplo, ela escolhia o lado mais fácil para se manter e que se não abrisse o olho, eu é quem acabaria em maus lençóis.

Bom, pelo que vejo agora, ela quer transferir a culpa do abandono de Lucas para mim. Quando ela apareceu grávida, passei madrugadas e madrugadas consolando e cuidando de todos os seus dramas. Não foram dias fáceis, pois mesmo chegando tarde da faculdade eu preparava a sua comida para o dia seguinte, para que tivesse uma alimentação saudável e às vezes faltava no trabalho para acompanhá-la no pré-natal, do contrário ela não aparecia. Várias e várias vezes eu fui atrás dela em porta de bar onde estava com as amigas bebendo, não se importando com a vida que carregava. Ela só conseguiu acalmar esse ritmo louco quando eu a convenci de que não teria responsabilidade sobre a criança, que eu cuidaria e amaria como se fosse meu filho. Agora, enxergando com mais clareza, vejo o quanto ela tirou proveito de mim, pois logo após o nascimento, nunca deu se quer um peito para o meu filho, para não deformar seu corpo, "mais do que já estava", como sempre ressaltava. Tirei quase toda a minha poupança para comprar-lhe roupas adequadas e pagar passagens e uma estadia de dois meses na Espanha, que foi onde disse que recomeçaria sua vida.

Não me importei em ajudá-la. Se era o que lhe fazia bem, eu faria. O caminho para o trabalho eu sabia, e se tivesse que fazê-lo novamente, para que todos estivessem bem e felizes, eu faria sem titubear.

Agora percebo o quão problemática foi toda essa minha proteção e como eu auxiliei em suas irresponsabilidades sempre a tratando como coitada. Ela não era, só precisava ser corrigida, mas eu estava cega demais encobrindo seus erros.

Ainda bem que sei do meu caráter e que acordei para a vida. Não vou permitir sua influência negativa sobre a minha vida novamente e nem sobre a vida do meu filho, eu só preciso de mais alguns meses e farei o teste final para a minha aprovação. Não aceito menos que isso, tenho estudado e praticado mais do que tudo nessa vida e a aceitação para o que sempre achei ser o lado certo é o que espero.

***********

Quarta-feira à noite e as ruas estão animadas, aparentemente hoje terá clássico no Paulistão e os bares estão começando a montar sua estrutura para receberem o público.

Por influência de Anderson, Lucas é palmeirense, não que eu me importasse com isso, mas chega a ser engraçado o meu pequeno cantando as músicas da torcida.

Douglas, que há duas noites apenas liga para falar com ele e não aparece pessoalmente, pois segundo ele, está no interior resolvendo pendencias de um trabalho. Não questionei mais além, porque era a primeira vez que falava de trabalho, ainda bem que trabalhava, porque começava a achar suspeito ter essa qualidade de vida e nenhuma ocupação.

Assim que chegamos em casa, ajudei meu bebê a tomar banho, já que ele vinha de barriga cheia, eu só arrumava para dormir. No dia seguinte, ele não teria aula, haveria reunião de pais e na sexta, ponto facultativo, ou seja, para ele tudo tranquilo, enquanto eu teria que me desdobrar em cem para participar de sua vida educativa e de minha ocupação.

Para minha surpresa, quando já estávamos indo para a cama, Douglas mandou mensagem dizendo que estava na porta. Mesmo a contragosto, abri para que ele pudesse ter um momento com Lucas, que quando o viu foi só animação.

Aquele acanhamento que tinha no início desapareceu, o desconforto da descoberta de um pai não há mais e em parte isso me alegra, não gosto do meu filho tímido na presença de pessoas, isso inibe seu comportamento e o torna uma pessoa fraca.

— E aí, molecão? Bora ver o jogo com o pai? — perguntou abraçado a ele ainda na porta.

— Bora! — Todo inocente ao horário e ao dia, ele concordou.

— É tarde para criança ficar na rua.

— Deixa ele comigo. Eu cuido — Estava sério, ainda não superou o fora que lhe dei. Suas palavras eram a suma da arrogância.

— Amanhã ele não tem aula, tem reunião de pais.

— Então, para não te atrapalhar no teu trabalho, deixa que eu vou. — Não sei, mas quando ele citou "trabalho" eu senti um arrepio forte em meu corpo, deve ser só impressão. — Faz uma malinha pra ele aí que eu levo comigo e depois eu trago. Veste ele aí pra nós ir ver o jogo.

Encarei a camisa branca com o símbolo do Corinthians e ergui a minha sobrancelha.

— Já vou logo avisando que você não vai gostar da roupa dele, vem filho, vamos se trocar.

É até bom que ele queira participar. Eu sempre fui só para as minhas necessidades e para as do meu filho, então, literalmente tive que me desdobrar em duas. Não tive uma rede de apoio e isso dificultou a minha trajetória, nada que eu não conseguisse contornar, mas foi árdua a caminhada. Agora que temos um pai prestativo e que quer participar, e que principalmente não é leviano em seu cuidado, eu me sinto mais confortável, me incomoda essa mudança, mas é confortável.


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