Capítulo 2: Amontoado de letras.

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Me sobressaltei com o barulho de algo sendo arrastado pelo chão. Me sentei, encolhendo meus joelhos até o peito, vendo a mini portinha na parte inferior da porta da torre aberta. O prato de comida havia sido empurrado até o ponto onde eu sabia que alcançava.

Me arrastei no chão até ele, ouvindo o ranger das correntes nas pedras, puxei o prato pra mim me encolhendo ali mesmo, no chão, enfiando a comida na boca com a mão. Na maioria das vezes, eu estava com fome demais para pensar em qualquer outra coisa que não fosse engolir cada coisa que era mandada pra mim, sem me preocupar com o que era.

Parei, roendo o osso do que quer que aquilo era. Parecia frango. Mas eu já não tinha tanta certeza assim. Só sei que precisava de cada pedaço de gordura que pudesse conseguir. Só que minha atenção foi pra outra coisa. Um pedaço de papel que veio junto com o prato. Ele estava junto com a comida, mas eu não reparei quando a fome falou mais alto.

Passei a língua nos lábios, sentindo o gosto da carne, antes de soltar o osso de volta no prato e pegar o papel, com os dedos engordurados. Havia um amontoado de letras, formando uma frase e o que deveria ser o nome de alguém. Engoli com dificuldade. Aquela era o primeiro sinal de alguém em tanto tempo, que acabei me obrigando a fechar os olhos e esfrega-los, apenas para ter certeza de que não estava ficando louca.

Olhei para a frase de novo, movendo meus lábios, enquanto tentava pronuncia-las. Minha mente ficou embaralhada, me obrigando a ameaçar o papel e jogar do outro lado daquela sala, voltando a comer aquilo.

Limpei o prato, lambendo qualquer resquício de comida dele. Ainda estava com fome quando empurrei-o de volta para perto da porta, onde a pessoa poderia tirá-lo dali quando voltasse com a segunda refeição, no início da noite.

Me arrastei até a parede, erguendo a cabeça para ver o céu nublado de Delarian, pela pequena janela fechada com grades. Fiquei na ponta dos pés, agarrando as grades e forçando meu corpo para cima, tentando ver o que havia do lado de fora. Mas meus braços tremeram quando consegui ver a imensidão de árvores, antes de eu despencar no chão, sem conseguir suportar o peso do meu corpo.

Senti meus ossos rangerem e meus músculos tremerem de protesto contra o impacto com o chão. Cerrando os dentes, me arrastei até o amontoado de trapos sujos, me encolhendo sobre ele, enquanto abraçava meus joelhos e fechava meus olhos, pensando nos nomes dos meus irmãos. Rezando a qualquer deus que houvesse no céu, para protegê-los. Para que estivessem bem e em segurança.

Adormeci com o barulho do primeiro trovão cortando os céus e com a chuva caindo com força, deixando o barulho das goteiras ecoar por aquelas paredes de pedra. Nos meus sonhos, vi a escuridão se aproximando, com sinos ecoando e vozes altas. Uma badalada. O barulho de algo cortando o ar. Como se anunciasse minha morte.

As vezes, quando acordava, me perguntava se estava tendo alucinações, se os sonhos eram reais, previsão do meu futuro ou apenas minha cabeça dando sinais de loucura. Nunca tenho certeza. As vezes toco meu próprio peito para sentir se meu coração ainda está batendo. Se o calor da minha pele ainda está ali. Se eu ainda não virei uma pedra e meu coração gelo.

Abri meus olhos quando um trovão cortou os céus e se chocou contra a terra, fazendo tudo tremer. Senti o sangue latejar contra minha testa, enquanto meu cérebro compreendia o que eu via pelos meus olhos embaçados.

Eu ainda estava deitada naqueles trapos, encolhida e com o suor escorrendo pela minha testa, como se eu estivesse pegando fogo. Encarei a porta da torre. Aberta. Ela estava aberta. Meus olhos podiam ver a silhueta da porta e do corredor que se abria depois dela.

Fiquei de pé em um segundos, com minhas pernas tremendo pelo esforço repentino. Mas eu já estava correndo. Estava alçando a porta, antes que aquela mão surgisse e a fechasse. Mas então eu estava tombado pra frente, com meus tornozelos me parando bruscamente por conta das correntes.

Mordi minha língua no momento que meus cotovelos se chocaram contra a pedra fria e minha testa quase se rachou ao encontrá-la. Tenho certeza que isso aconteceria se meus braços, agora reverberando uma onda de dor pelo meu corpo, não tivessem me amortecido.

Ergui meus olhos até a porta ainda aperta, sentindo as correntes queimando nos meus tornozelos e algo gelado escorrendo até meus pés. Um lembrete de como eu não passava de um bicho acorrentado. Meus olhos se encheram de lágrimas, enquanto eu sentia que iria me desfazer ali mesmo.

—Você está bem?

Minha mente virou pó e meus ouvidos foram atingidos por um zumbido. Parei o movimento de me levantar, como se aquele som, aquela frase, fosse mais um pesadelo, mais uma alucinação. Não ousei olhar para o lugar de onde ela vinha. Não ousei acreditar na minha mente traiçoeira, sempre me pregando peças.

—Ei, você está bem? —A voz questionou de novo, junto com passos apressados vindo na minha direção.

Eu pisquei, soltando o ar com força. Antes que aquela voz chegasse até mim, eu já tinha me arrastado com os últimos resquícios do meu cérebro funcionando até a parede, fazendo os passos cessarem e restar apenas minha respiração pesada e meu coração acelerado.

Ergui os olhos, tão lentamente, que o ato pareceu levar minutos para terminar. Mas ali estava, uma pessoa. Uma pessoa de verdade. Ou deveria ser uma. Era um homem. Talvez, da minha idade, ou mais velho. Cabelos escuros e curtos. Pele puxando para um tom de moreno claro. E olhos tão azuis, que pensei estar encarando o próprio oceano.

Mas não foi nada daquilo que me chamou a atenção. Foi, por entre os fios de cabelos escuros, as duas formas pontudas do que deveriam ser uma orelha de elfo. Aquela visão me fez estremecer, a medida que meu sangue esquentava com as lembranças ruins.


Continua...

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