Cinquenta e quatro

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Passar a noite no hospital não era confortável. O revestimento plástico do colchão era barulhento, as luzes não ficavam muito tempo apagadas, tinha alguém que roncava alto, a cada meia hora um técnico vinha aferir pressão arterial, aplicar medição em alguém, medir a glicose e outra infinidade de coisas. Por isso não foi uma surpresa que logo depois do café da manhã os olhos do personal trainer tenham ficado avermelhados e sonolentos.

Não havia muita coisa que Samuel pudesse fazer sobre isso, por tanto se limitou a recolher os copos descartáveis e as embalagens vazias dos pães e jogar na lixeira do meio no quarto. A comida do hospital não era das piores, mas não era saborosa também, o café com leite tinha muito açúcar e o pão estava ligeiramente rígido. Samuel dispensou o café com leite quando tentou dar o segundo gole pequeno e viu a nata que estava se formando na superfície da bebida a medida que ela esfriava. Apenas devolveu o copo para a cômoda em silêncio, abandonando o pão também.

A textura de alguns alimentos lhe causava sério enjôo, como a Nata, quiabo cozido, vitaminas de frutas muito grossas e coisas assim, viscosas. Provavelmente isso estava relacionado a sua péssima alimentação na infância, pois naquela época vivia a base de biscoitos recheados e sucos de pacote que custavam apenas 20 centavos. Com um pacote pequeno do pó químico fazia 2 litros de suco, totalmente artificial e em dias que tinha algumas moedas a mais, comprava bolo de padaria e iogurte.

Não que pudesse reclamar, eram suas próprias escolhas afinal, mas isso trouxe consequências. Levou anos para se adaptar, os legumes e as verduras não foram um problema, mas as carnes sim. Teve uma dificuldade especial com a carne vermelha, especialmente quando era cozida e envolvia ossos, tutano, nervos ou gordura.

Houve um episódio uma vez, especialmente memorável, quando ainda morava com a tia. Ela andava preocupada com sua condição, pois além da perna quebrada, estava magro e ossudo quando chegou na casa e ela quis garantir que se alimentasse adequadamente e reforçou o cardápio da casa com receitas fortes. Pode lidar bem com todos os pratos servidos, mesmo que ainda comer fígado com couve não fosse agradável, mas um dia o almoço foi um cozido de ossobuco, feijão, verduras e quiabo.

Foi absolutamente desastroso, logo na primeira colherada seu estômago parecia revirar, a baba natural do quiabo cozido havia engrossado o caldo do feijão. Na segunda colherada a comida viscosa dançou na sua boca, se misturando a sua própria saliva e quando tentou engolir, o enjôo se tornou insuportável. Vomitou um pedaço de quiabo de volta no prato e simples aparência da comida mastigada foi o bastante para que vomitasse o que tinha no estômago alí mesmo. Lembrava que sua tia pensou que estava doente, o médico garantiu que não tinha nada e o psicólogo a fez pensar que estava aterrorizado com os acontecimentos da época, o que não era bem uma verdade. Atualmente podia rir daquela cena toda.

As pessoas tendiam a mau interpretar sua conduta quando educadamente recusava alguma refeição por causa da comida servida, mas não era algo que podia se forçar a fazer, ou acabaria em mais desastres constrangedores. O fato é que se você não ensina seu filho comer quando é criança, ele terá uma série de dificuldades quando for adulto e não é porque ele é "chato para comer". É um impulso mais forte, uma reação verdadeira e definitivamente não pretendia testar seus limites dentro de um quarto de hospital lotado de pacientes.

— Porra, parece que minha bexiga vai explodir! — reclamou Toni, de repente, interrompendo seu devaneio.

Ele se desencostou do travesseiro que Samuel trouxe de casa, sentado mais ereto e isso trouxe uma careta de dor. Imediatamente o mais velho levantou da poltrona e colocou as sandálias no lugar certo para quando o homem ficasse em pé, mas a tontura surgiu com força e Toni fechou os olhos por um momento, se segurando nas laterais da cama.  O músico o segurou no ombro, interrompendo o movimento.

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