Irmão.Era esse seu "lugar". Não primo, não tio, não amigo, nem colega.
Muito menos pai.
Sua caligrafia, ligeiramente puxada para a direita, registrava no papel ao lado do seu nome aquela palavra tão simbólica.
Samuel olhou mais uma vez a palavra simples que deveria definir a relação familiar que tinha com Maria da Luz.
Encarava o papel avaliando o efeito ruim que o termo lhe causava, sem entender exatamente porque tendia a rejeitar aquela verdade. Por alguma razão, escrever aquilo o entristeceu notavelmente.
Era irmão de Maria da Luz. Ponto. Ela deixava isso cada vez mais claro quando o tratava como tal. Sempre tentava discutir suas ordens, sempre dizia algo como "se tu não deixar eu vou pedir para o papai", era até um pouco engraçado quando ela "fuxicava" a Toni quando Samuel a contrariava, exatamente como uma irmã caçula e mimada faria.
Luz lhe tinha como confidente, lhe contava coisas que tinha vergonha de falar com o pai. Como quando menstruou pela primeira vez, no ano anterior.
Na ocasião Samuel a levou à ginecologista, como havia prometido fazer quando fosse a hora. Toni e qualquer outra pessoa foi expressamente proibida de acompanha-la com exceção do irmão mais velho, com quem geralmente conversava sobre essas coisas de menina/mulher.
Tinha consciência que não era comum uma garota na puberdade conversar com o irmão dez anos mais velho sobre essas coisas. Mas entre Toni e Samuel, a garota se sentia mais confortável com o músico.
Naquela consulta Luz ficou descontrolada, em parte pelo nervosismo, quando a médica lhe explicou sobre as cólicas que sentia, que não havia muito a se fazer, umas mulheres tinham mais e outras menos. A garota xingou a doutora com nomes feios, Samuel precisou se desculpar no fim da consulta.
Eram essas pequenas coisas que ela fazia, que mostravam que não o via como pai. Porque com Toni, o tratamento era completamente diferente, tinha um respeito especial, uma admiração, como se ele fosse um super herói.
Lembrou de Maria criança, quando veio para sua vida, o chamava de pai com tanta devoção que lhe tocava a alma. Sua falecida mãe havia cometido um erro ao fazer a caçula acreditar que Samuel era pai da garota, quando na verdade era irmão, na ânsia de escondê-la do pai biológico. Confundiu a menina completamente.
Mas talvez o maior erro tenha sido dele próprio. Jamais deveria ter se apegado a isso. Em algum momento começou a acreditar naquela mentira também. O pior de tudo era que só percebeu seu erro quando Luz entrou na puberdade e passou trata-lo como o irmão que era, já que nunca escondeu a verdade da garota.
No final da contas, era o único que sentia falta daquela admiração respeitosa que a menina teve por ele na infância e que ainda tinha por Toni.
Encarava o papel na sua frente há quase meia hora, sem fazer absolutamente nada.Havia colocado naquela lista todos os parentes que conseguiu lembrar. Ouviu a história da família apenas uma vez, há muito tempo, mas acreditava que não tinha esquecido ninguém.
Exceto um.
Ele.
Seu padrasto e pai biológico da caçula.
Só em lembrar do sujeito já sentia um calafrio ruim percorrer o corpo, num misto de sensações ruins.
Estava em dúvida se devia ou não colocar o nome daquela pessoa no papel também. Por um lado, era pai biológico da garota, mas por outro lado, não se imaginava respondendo as perguntas que certamente surgiriam diante da palavra "pai" escrita ao lado de um nome diferente.
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Segredo de Família
RomanceOito anos se passaram, Samuel, Toni e Luz acabaram formando uma família como qualquer outra. A menina que antes idolatrava o irmão mais velho se revolta, no auge da adolescência, quando Samuel se recusa a falar sobre, Mauro, o pai biológico da irmã...