Prólogo

4.5K 362 72
                                    


Luz se empertigou no divã, virando a folha do álbum de fotografias com os olhinhos brilhando de curiosidade.

— Olha! Eu lembro disso! Olha! Isso foi na virada do ano, sem ser esse, mas o outro, antes, bem antes né?

Samuel sorriu, olhou rapidamente o álbum, vislumbrando uma foto onde Toni estava vestido de branco, com uma camiseta com gola em V, uma bermuda jeans azul clara, sandálias de dedo, estava sentado muito despojado no sofá azul da sala e sorria enquanto Luz lhe arrepiava os cabelos negros.

— Foi princesa, na noite da virada, no ano retrasado. Você lembra que vimos a queima de fogos de artifício no parque? — comentou, voltando sua atenção para o caderno onde anotava algumas frases, estava quase terminando aquela música.

— Sim! Foi muito legal! Eu deixei o cabelo do paizão bem maluco e ele saiu na rua daquele jeito mesmo! Foi engraçado que todo mundo ficava olhando para ele... Como que tu conheceu o paizão? — perguntou de repente, tirando o irmão do mar de lembranças nostálgicas que o afogava.

Samuel olhou para a irmã, percebendo que a garota estava entretida com uma foto onde ele aparecia com o Toni o abraçando por trás, o casal olhava para cima, vendo fogos de artifício brilhando no céu noturno. Apesar da foto ter ficado incrivelmente linda, não exibia nem um terço da felicidade daquela casal que sorria ali.

A pergunta curiosa o fez lembrar daquele dia, na enfermaria da escola quando um furacão com lindos olhos negros e penetrantes o acordou com um solavanco, cuspiu uma torrente de palavras obscenas e irritadiças, ainda lhe agrediu com uma camisinha, que supostamente deveria usar para transar com uma menina depois das aulas. Acabou sorrindo, um sorriso divertido, percebendo como Toni era estressado desde muito novo.

— Estudávamos na mesma escola. Um dia uma menina pediu para ele me entregar uma carta...

— Ah! Tipo uma cartinha de amor?! O paizão não deu um pau nela?! Que piranha! — admirou-se.

Samuel até prendeu a respiração.

— Sim, uma cartinha de amor, sim. Eu não quero ouvir você falando desse jeito princesa, isso é feio. Você é uma mocinha e esse tipo de coisa não combina com você.

— Ai tá bom, continua! Vai! E aí? O que aconteceu depois?! Tu ficou com ela? — exasperou-se.

— Não, eu não fiquei com ela, eu sempre fui muito tímido sabia? Então não namorava muito. Ele me deu a carta e foi assim que nos falamos a primeira vez.

Resumiu, pulando a parte da quase briga e da camisinha por achar inadequado para uma menina de mente tão fértil como sua irmã.

Luz o olhou com incredulidade.

— Tu tá mentindo! — acusou.

— Não, eu não estou e se fala "você" e não "tu" — rebateu calmamente, voltando a sua atenção para o caderno.

— Mas não pode ter sido só isso! Que sem graça! Vocês eram muito chatos!

— Sinto muito se você não gostou — encrencou sorrindo um pouco do jeito a irmã.

Luz revirou os olhos.

— Que seja! Tanto faz! Tem muito mais graça conversar com o paizão — reclamou, fazendo um muxoxo.

Samuel sorriu outra vez. Luz sempre o divertia com aquele jeitinho teimoso e reclamão. A menina se concentrou no álbum outra vez, virando as folhas lentamente.

— Mas por que tu casou com ele? — surgiu de repente, Luz fez uma careta de quem estava tentando desvendar o maior mistério da vida.

Não era a melhor pessoa do mundo para explicar coisas do coração, honestamente ainda não compreendia completamente o universo de emoções, as vezes ainda tinha vontade de voltar a ser vazio como era antes de reencontrar Toni.

— Porque sim, nós gostamos muito um do outro, hum... — tentou escolher as palavras, mas não conseguia achar um jeito de explicar.

— Isso eu já sei, tá! Eu não entendi foi porque o tu gostou dele. Tipo assim, tu não é igual o tio César, ele disse que sempre gostou foi de menino, então se ele casar com um menino tá tudo bem, né? Mas tu não. Tu gostava de menina, que eu sei, então eu não entendi porque resolveu casar com o paizão, assim do nada! — explicou, muito cheia de razão, a lógica do seu pensamento.

Samuel estreitou os olhos por um segundo, absorvendo a pergunta, tentando com afinco não se incomodar com o fato da sua irmã copiar o jeito errado que Toni tinha de falar, parecia até uma miniatura do homem.

— Eu... bem princesa, você ainda é muito nova para entender certos assuntos...

— Ah! Nem vem dizer que é coisa de adulto! Eu não sou mais criancinha, já tenho dez anos! — falou toda orgulhosa, como se estivesse se gabando de algo muito importante.

— Hã... Como eu posso te explicar isso? Hum... Ele...

Refletiu um momento e então deixou o caderno de lado, imediatamente a menina foi para o seu colo.

— ... Ele sempre foi o amor da minha vida, eu só demorei muito para perceber. Você precisa aprender uma coisa, menino ou menina, isso não é importante se o sentimento for sincero. Entendeu? — explicou calmamente, olhando nos olhos da irmã e acariciando seus cabelos.

Luz pareceu hesitar por um momento.

— A mamãe conheceu o pai? — questionou, um pouco mais séria.

Samuel sentiu um aperto no peito, mas sorriu mesmo assim, era mestre em guardar suas emoções apenas para si mesmo.

— Não, ela não teve essa sorte.

— Acha que ela teria, tipo assim, aprovado ele para ser teu marido?

Samuel ergueu as sobrancelhas, muito surpreso com a pergunta tão natural. Olhou bem para a irmã percebendo a curiosidade legítima ali, era primeira vez que a menina estava mostrando interesse pela falecida mãe.

— Eu acho que não. O seu pai, também não teria gostado dela, a Violeta era uma pessoa muito difícil.

Com o tempo havia parado de se referir a Violeta como "mãe", foi um processo natural e inevitável, já que ela nunca mereceu seu afeto e tão pouco fez questão dele. Mas não precisava contaminar sua irmã caçula com as coisas ruins do seu passado. 

— Porque a mamãe disse que tu era meu pai, se na verdade era meu irmão? Ela me deixou toda confusa.

Samuel engoliu a saliva da boca, fazendo o pomo de adão subir e descer, mais afetado do que gostaria de admitir. Pensou nos muitos outros segredos da família que nunca fez questão de saber.

— Outro dia, quando você for mais crescida, vamos conversar sobre isso, tudo bem?

— Então promete de dedinho igual o paizão! — exigiu, toda mandona, já foi se endireitado e erguendo o dedo mínimo de uma das mãos, bem na frente do rostinho, com um olhar desafiador.

Samuel olhou para que dedinho em riste e quis sorrir, mas ao mesmo tempo se sentia apreensivo, ergueu a mão também e enroscou seu dedo no da irmã.

— Eu prometo... que quando você crescer vou te contar toda a história da família, mas só quando for madura o suficiente para entender o que significa ser uma Franco.

Por mais que tenha proferido aquelas palavras com um sorriso fraternal, desejou do fundo do coração que esse dia nunca chegasse, que sua irmãzinha nunca questionasse de onde veio, porque honestamente não tinha certeza se conseguiria causar uma decepção dessas na menina.

Segredo de FamíliaOnde histórias criam vida. Descubra agora