34 • Depressão

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"Ama o impossível, porque é o único que não pode te decepcionar."

Vergílio Ferreira

Tornei-me espectadora das mulheres do rodízio

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Tornei-me espectadora das mulheres do rodízio. Igor seguira a vida, como esperado. Nem sequer devia sentir minha falta. Afinal, tinha mulher a rodo para suprir minha ausência. Se é que eu fazia falta.

Ao assumir seu desapego, imaginara certo. Qualquer impressão de intimidade fora uma ilusão. Éramos uma conveniência. Nada além disso.

Para piorar, eu sempre soubera. Sempre considerara nossos encontros sexuais como um evento único, sem plateia para pedir "bis" ou reprises, justamente por saber que aquilo não tinha futuro. Por mais atencioso que fosse, não deixava (nem deixaria) de ser quem era.

Permitir-me ludibriar com o seu sorriso, tão raro e tão belo, seria pior do que atender ao chamado de um amigo e descobrir se tratar de uma reunião de esquema de pirâmide. Vacilar frente aos seus modos compreensivos, sua voz suave, o toque de suas mãos, seria cair numa cilada.

Mesmo consciente disso tudo, eu caí. Escorreguei, tombei e caí de cabeça na ilusão. Mas como não cair?

Como não lembrar de quando dormimos juntos pela última vez? Como esquecer o sussurrado "dorme bem" que levou meu coração a errar as batidas? Nenhum ponto negativo, no fim das contas, foi capaz de se sobressair.

Quando a poeira abaixou, não mais me ative ao Homem de Lata que me destratara quando nos conhecemos. Quando a confusão de pensamentos se acalmou, era o Igor descontraído quem eu enxergava. E enxergava no sentido mais literal possível.

Como uma aparição sobrenatural, flashbacks dele povoavam meu apartamento. O sr. Asimov estava em minha sala, com sua mão boba brincando com meus seios; em minha cozinha, fingindo precisar de algum tempero básico que ele encontraria disponível em qualquer bodega 24h; em meu banheiro, esfregando-se em mim enquanto tomávamos (ou fingíamos tomar) banho juntos; em minha cama, visivelmente contente, tecendo comentários bobos ou lançando mão de questionamentos das mais diversas ordens.

"Sabe a quantas anda a arroba do boi gordo?" Ele me perguntou certa vez. Desatei-me numa gargalhada que provocou uma expansão de 1 centímetro no seu sorriso contido.

"Como deve ser a vida após a morte?" Ele questionou noutra dessas viagens interrogatórias. Deixou-me sem respostas. Quer dizer, com muitas respostas, de acordo com várias crenças.

Este era Igor Asimov: um multifacetado homem insensível. Eram por essas memórias que eu tanto lamentava. Por conta desse Igor, havia chegado ao fundo do poço.

Ultimamente, eu nem sequer tinha forças para me levantar e bater à sua porta para reclamar de qualquer coisa. A simples visão dele, ainda mais sem roupa e com uma trupe de loiras atrás de si, causaria estragos incalculáveis.

Aliás, encontrá-lo nas reuniões do trabalho transformara-se numa tortura maior do que era quando ainda não nos conhecíamos intimamente. Estávamos mais brutos até, como se houvéssemos regredido para uma posição anterior à estaca zero.

No lugar do ódio instantâneo, surgira uma espécie de ressentimento cru. As farpas trocadas cortavam fundo na carne. Quando nos reuníamos, vários elefantes brancos povoavam a sala e o clima pesava até o ponto de se tornar sufocante.

Nas raras (dolorosas) ocasiões nas quais nos trombamos no corredor, nos estranhamos do olhar ao cumprimento rude. Nunca houve "bom dia" tão bruto quanto aquele que trocáramos mal amanhecera o dia anterior. O impasse para ver quem entraria primeiro no elevador, então? Pior ainda.

O inferno de Sartre fazia piseiro em minha vida. Igor não me dava um descanso. Impotente, testemunhava meu próprio colapso.

Agora, enquanto tentava assistir aos meus filmes do coração, ouvia os tão odiados gemidos. O apartamento ao lado ganhava vida com aqueles sons. Eu morria por dentro.

No escuro, com as cores da televisão a refletirem luz em meu rosto, abraçada a uma almofada como se esta fosse minha boia salva-vidas, eu chorava minhas mágoas para não me afogar em dor de cotovelo.

Não bastasse o choro desmedido, naquele instante, a vida conspirava contra mim. Para meu suplício, nem o filme atual me distraía ou contribuía para amenizar a fossa.

"Lisbela e o Prisioneiro" me parecera uma sátira de mau gosto da minha vida. Uma mocinha apaixonada por um vigarista, safado, sem vergonha que, depois de transar com meio mundo de mulher, em trocentas cidades, afirmava estar apaixonado. Cada uma!

O mais tragicômico dessa infeliz coincidência era que, no meu caso, o salafrário nem confessara sua paixão. E eu duvidava que qualquer sentimento — além de empatia ocasional — existia naquele coração de pedra.

Sentindo-me terrível e irreversivelmente só, tombei para o lado, de pernas encolhidas, ainda agarrada à almofada. Abandonei-me em prantos até pegar no sono, apenas para ter de acordar no dia seguinte, revestir-me da carapuça de mulher de negócios e lidar com aquela estonteante criatura intragável que morava ao lado.

 Abandonei-me em prantos até pegar no sono, apenas para ter de acordar no dia seguinte, revestir-me da carapuça de mulher de negócios e lidar com aquela estonteante criatura intragável que morava ao lado

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Sentiu! (。﹏。*)

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