"O mundo está cheio de coincidências, e se uma certa coisa não coincide com outra que lhe esteja próxima, não neguemos por isso as coincidências, só quer dizer que a coisa coincidente não está à vista."
José Saramago
Preparava-me para sair da vaga na garagem. O céu limpo e o frescor da brisa marinha exigiam pelo menos um passeio rápido ao longo da orla.
O conserto da moto saiu rápido e excelente, como pedi. Minha menina era o primor da Harley-Davidson, uma CVO Road Glide Limited, edição limitada como o próprio nome denunciava; também se tratava de um modelo do 120º aniversário, uma exclusiva entre as exclusivas. Eu não devia bobear e ficar sem minha preciosa por muito tempo.
Como havia ficado pronta no dia anterior, botá-la para jogo me pareceu o certo a se fazer. Antes de colocar o capacete, ajeitei o cabelo após checar seu estado via retrovisor. Era uma arte arranjar um jeito de não bagunçar os fios e prevenir o efeito amassador do capacete (vaidoso, sempre. Desleixado, igual certas pessoas, jamais).
Logo após suspender o pedal de apoio, impulsionei para dar ré. Daí então, minha saída triunfal sofreu uma interrupção. Precisei parar de imediato antes de atingir quem passava por trás de mim.
Outra dor de cabeça por colidir com alguém, porque supostamente eu estava errado, não fazia parte dos meus planos. Mesmo tendo parado na hora, me livrando da batida, ouvi o ruído de algo metálico indo de encontro ao chão.
Puta que pariu! De novo, não, por favor.
Temendo o pior, abandonei a moto no intuito de ajudar quem (ou o que) quer que houvesse caído. Arrependi-me quase instantaneamente. A conhecida figura, de tranças presas e roupas soltas, já levantava sua bicicleta sem dificuldade.
Concentrada no infortúnio da queda, sequer me deu atenção a princípio. Depois de aprumar-se, elevou a cabeça. Nossos olhares se cruzaram. O clima pesou — embora o tempo continuasse agradável e o dia, ensolarado.
As pálpebras dela tremiam. Eu me preparava para ouvir uma chuva de acusações, ser pintado como o diabo. Por sorte, os anjos interviram. O anjo, para ser mais específico.
Vacchiano, comprometido com o cosplay de porteio, em seu verossímil ato teatral, veio até mim. Emburrado, como previsto. A caricatura de um trabalhador honesto. Haja saco.
Nunca iria me acostumar com seu teatro. Aquela lente de contato para escurecer seus olhos só enganava quem não era capaz de descobrir que Clark Kent e Superman eram a mesma pessoa.
Antecipando a bronca, me adiantei e falei:
— Já sei, já sei. Vou tomar mais cuidado na próxima. Quanto menos bate-boca, melhor.
— Acho bom — retorquiu com uma expressão de dúvida.
Ignorando-me, Vacchiano virou as costas e perguntou, todo simpático, se ela havia se machucado (e se eu lhe causara maiores transtornos) antes de retornar ao seu posto. Com a saída do fake assalariado, Amanda voltou sua atenção a mim.
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Destino MotoCiclista
Romance+18 | Completo | Há quem acredite em providência divina, propósitos ocultos. Igor Asimov não é uma dessas pessoas. Para ele, as certezas alheias não passam de ilusão e a vida é um grande palco de improviso, com algumas coincidências vez ou outra. Ma...