38 • Rua sem saída

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"Está assustado consigo mesmo. Está com medo de se apaixonar por mim."

"Notorious" (1946), dir. Alfred Hitchcock

Acostumei-me a sentir sua respiração contra a minha pele

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Acostumei-me a sentir sua respiração contra a minha pele. Afinal de contas, Igor transformara o ato de dormir comigo em um hábito. Eu começara até a encarar com naturalidade sua presença constante em minha vida. Apesar dos pesares.

No entanto, nem esse costume me preparou para o repentino acesso de carinho vindo daquela pedra em forma de gente. Para alguém mais emocionalmente indisponível do que Heleno, ele me saíra afetuoso além da conta.

Naquela manhã, abraçado comigo, cheirava meu cangote, distribuía carícias despretensiosas. Sem gracinhas. Nada de me dedar ou apalpar. Comportado, como o último romântico, verbalizou sua ilustríssima opinião.

— Amorzinho, você é uma delícia — sussurrou enquanto enchia meu pescoço de beijos suaves.

Amorzinho? Esse era um termo recorrente no trato com as garotas de programa — disso eu sabia —, entretanto, soou diferente daquela vez. Em seu tom sedutor, sussurrado, pareceu sincero.

— Amorzinho? — ecoei meu pensamento. Ergui o tronco de imediato e logo me sentei na cama para examiná-lo com atenção. — Que papo é esse? Tá me estranhando? — Semicerrei os olhos. Buscava detectar quaisquer sinais de sarcasmo em seu semblante. Precisava saber se ele falava sério.

— Ah, pare com isso. É só modo de dizer — esquivou-se com a simples frase e deu de ombros.

Então agora eu era seu amorzinho? Amorzinho por conveniência? Amorzinho entre os outros amorzinhos de uma noite?

— Guarde seus modos pras outras, beleza? Você ganha mais. Ou melhor, elas ganham mais — retruquei, apática. Bufei, levantei da cama no instante seguinte e procurei algo para me vestir.

Coloquei um macacão jeans, uma blusa soltinha básica e um tênis. Estava coberta do pescoço para baixo, do jeito que ele odiava, para não abrir margem à sua malemolência nem ceder ao seu charme.

Eu havia fechado a cara também. Não restara mesmo clima algum para uma rapidinha antes de sair e me encontrar com meu pai.

Peguei minha mochila, o capacete e as cotoveleiras. Desde o acidente não-tão-acidental, cortesia da irresponsabilidade do motoqueiro à minha frente, redobrara o cuidado ao andar de bicicleta. Nunca se sabe quando um gigantesco babaca vai te jogar no chão.

— Tô saindo — avisei-o, enfim pronta. — Demorarei a voltar. Fique aqui, vá embora, eu não ligo.

Spoiler: eu ligava. Adoraria voltar para casa e encontrá-lo à minha espera.

— Só se lembre de trancar a porta se for sair, por favor. Pode ficar com a cópia da chave se quiser.

Queira, vá! Quase supliquei sem nem saber o porquê.

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