Capitulo 30 - Parte II

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Ficámos alguns minutos em silêncio, agora, com a minha respiração tão irregular como a dele. eu tentava apegar-me a qualquer coisa, desesperada ao sentir a esperança definhar. Os médicos cometiam erros com frequência. O estado de liam tinha sido mal diagnosticado desde o principio. Ele não tinha ar de quem estava prestes a exalar o último suspiro. 

- Liam, eu já vi doentes em fase terminal. Eles não têm o teu aspecto...

- Eu sei - interrompeu-me ele com ar exultante. - O tempo que passei contigo é a razão pela qual eu tinha de voltar aqui... para me lembrar do que é realmente estar vivo e apaixonar-me. Tu foste o meu destino, Jessy, mas eu comecei a deixar-te a partir do momento em que nos encontrámos. Tentei regressar a casa para te poupar a isso. 

Aquele choque arrasador não me tinha retirado verdadeiramente a capacidade de raciocinar. Esfreguei as mãos. 

- Não existe mais nada que a medicina tenha para te dar, mais nada mesmo?

Liam começou a arrancar tufos de erva, tentando ganhar tempo, com rugas profundas a sulcar-lhe a testa. 

- Com tratamentos mais invasivos, talvez mais algumas semanas. Podem dar-me mais tempo, mas não um tempo de qualidade - o olhar dele veio ao encontro do meu. - Eu já estou morto, Jessy.

Tentei acalmar-me, enquanto digeria aquelas palavras. Uma vez, o meu pai tinha-me dito que uma das condições para ser um bom médico era saber quando para antes de tentar, porque morrer bem era tão importante como viver bem. Eu tinha o desejo egoista de berrar ou bater com os pés, de me revoltar contra o mundo. Queria suplicar a Liam que se submetesse a mais tratamentos por minha causa, para aproveitar cada segundo que lhe fosse oferecido. No entanto, ao obrigar-me finalmente a fitá-lo no fundo dos olhos, compreendei o que ele me pedia: aceitar aquela realidade. "Quando amas alguém, tens de deixar essa pessoa libertar-se", tinha-me dito Louis. E era isso que Liam me pedia nesse momento. Mas ele estava louco se pensava que o ia deixar partir sem mim. 

- Eu vou contigo...

Liam estremeceu de forma visivel e envolveu o corpo nos braços.

- Não vais desistir de viver por minha causa. 

Sacudi bruscamente o cabelo, com a voz a elevar-se num tom histérico. 

- Talvez eu queira fazer isso. Talvez não haja aqui mais nada para mim. 

- Vais ter uma grande carreira, encontrar alguém e...

- Eu não tenho futuro - interrompi-o com uma raiva obstinada.

- Promete-me que não vais tentar seguir-me. Promete-me que não vais... - a respiração de Liam tornou-se ainda mais ofegante. 

Aquilo era um erro enorme. Eu estava a deixar Liam ainda mais perturbado. Tinha de ser forte por ele. O único consolo secreto que me restava era não o deixar partir sem mim, ainda que o fosse negar com toda a energia. Cruzei os dedos atrás das costas e emiti sons tranquilizadores a assegurar-lhe de que não falava a sério. Senti crueldade daquele momento como se me dessem um murro no estômago. Tinha adormecido a planear a nossa vida juntos e, ao acordar, descobrira que nos restavam poucas horas antes de nos despedirmos para sempre. 

Sorri entre as lágrimas não derramadas. 

- Nós chegaremos a velhos. Lembras-te do meu sonho? Tínhamos mais do que duas semanas... tínhamos uma vida pela frente. 

- Tínhamos uma vida pela frente - ele esboçou um grande sorriso, e o seu rosto adquiriu de novo um ar jovial. 

- Algumas pessoas chegam à velhice - segredei-lhe numa voz pastosa - , mas elas não vivem realmente, limitam-se a existir - arrastei-o comigo para cima da erva, de frente para mim, semicerrando os olhos à claridade que ascendia rapidamente. - O sol ainda não nasceu.Sentes alguma dor? 

- Não quando estou contigo - murmurou ele com gratidão. - Nunca poderás saber o que isso significa. Tinha pensado em tubos e sondas... uma máscara respiratória... equipamentos a monitorizar cada batimento cardíaco. Se alguma vez pensasse que ia ser desta maneira, não teria tido medo. 

- E porque havias de ter? - insisti, morrendo mais um pouco com cada palavra. - Não há nada a recear. 

- Ao dizeres-me isso, de repente, acredito. 

Tive de apelar à última parcela da minha reserva para continuar. 

- Estive prestes a não te encontrar outra vez. Sofri um acidente no apartamento de Harry e quase morria. Foi muito estranho porque... mesmo no fim... eu aceitei-o - enxuguei uma lágrima antes que ela resvalasse sobre ele. - Um dia contigo vale uma vida inteira. 

- É tão bom  ouvir isso - disse ele com um suspiro de cansaço.

De súbito, um pensamento inquietante passou pela minha cabeça, deixando-me gelada. 

- Liam! A tua mãe...!

- Nós já falámos - contou ele com um esforço insuportável. - Ela teve um espécie de... pressentimento de que algo se passava e está no aeroporto neste momento. Falei-lhe sobre ti. 

- E se...? - a minha garganta ficou bloqueada. 

- Se ela não chegar a tempo? - concluiu Liam, e os seus olhos eram dois poços vidrados de dor. - Ela disse-me uma coisa muito estranha, Jessy. Disse que ao longo da minha doença se despedia de mim a cada dia... e que cada segundo a mais era uma bênção.

Uma corrente de lágrimas salgadas jorrou pela minha face. Tinha desejado tanto um coração e agora sabia o que era senti-lo a despedaçar-se em milhões de bocadinhos. Pouco tempo depois, Liam passou silenciosamente a um estado de inconsciência, mas eu continuei a falar. O último sentido que se perdia era a audição, segundo me dizia o meu pai. Queria que Liam escutasse a minha voz e que a levasse consigo para onde quer que fosse. Falei.lhe do aspeto das nuvens nesse dia e de como sentia a luz do sol tocar-me na pele. Descrevi-lhe as árvores e as flores que ele amava. Tinha andado cega perante a beleza que me rodeava, mas, naquele momento, via-a através dos olhos dele, ao descrever-lhe cada flor e cada folha. Disse-lhe uma e outra vez que o amava. Ele estava mais do que confortável, a frase horrivel usada para descrever os doentes terminais, o rosto dele inundava-se de felicidade e paz. 

Chorei em silêncio. 

"Para que serviria amar se isso não durasse uma eternidade?"

Estas foram as últimas palavras que lhe disse. Liam abriu os olhos e estremeceu num fôlego profundo. Não precisei de um monitor cardíaco me dissesse que era o derradeiro. Por dentro, eu implodia num grito longo e silencioso, mas deixei-me ficar com Liam nos braços, afagando-lhe o cabelo, apoiando a minha face na face dele até a sentir cada vez mais fria. Mesmo até ao fim, rezei por um milagre, mas ele não acontecem às pessoas como eu. 

Não olhes para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora