Capitulo 23

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Queria deseperadamente tornar aquilo menos penoso para Liam.

- Isso não significa que o teu pai seja um monstro. Há pessoas para quem caçar não tem nada de mal.

Ele puxou bruscamente a gola da T-shirt e eu vi uma cicatriz retangular de um lilás prateado.

- Ele agrediu-me com a coronha da espingarda, porque eu não queria matar uma lebre. Ela chiava de dor. Eu tinha de acabar com ela... devia provar que era um homem... a minha mãe gritava mais atrás... é tudo o que recordo... acho que desmaiei.

Queria envolvê-lo nos maus braços, mas receava aproximar-me dele outra vez.

- A minha mãe odiava a propriedade, Jessy. O desejo de ela era sair daqui e levar-me com ela. O meu pai dizia que ela tinha de ir para o outro lado do mundo para ele não nos encontrar - Liam estremeceu. - Acho que foi precisamente isso que ela fez.

- Sinto muito - proferi, com a noção de como isto soava desajustado. 

- Não te preocupes. Fico contente por saber a verdade, mesmo que ela me magoe. A verdade é estremamente importante. Foi por ela que eu voltei a casa. Por ela e... para te encontrar - o olhar dele era terno e suplicante. - Aquilo que sinto por ti é sincero, Jessy... não seria capaz de o fingir.

Percebi que Liam estava de novo a envolver-me, e sentia-me demasiado fraca para resistir. Os lábios dele moveram-se em silêncio e os seus olhos vacilaram. Pousei-lhe os dedos nas pálpebras e obriguei-o a fechá-las. Ele estava esgotado, física e emocionalmente, e adormeceu em minutos. Era a segunda vez que adormecia à minha frente. Tentei esquecer a expressão do seu rosto ao dizer-me que não podia fingir aquilo que sentia por mim. Nunca ninguém tinha olhado para mim daquela maneira. O meu coração explodia de emoção. 

Pus-me de pé num salto, mais inquieta do que nunca e ansiosa por esticar as pernas. Pobre Liam. O pai dele revelava-se um tirano brutal... o mais oposto possível ao cavaleiro branco.

Senti um nó na graganta e fiz um esforço por concentrar-me nas pistas de Harry. As duas estátuas tinham sido encontradas, mas não estavam juntas. Abandonei a asombra do salgueiro. Ainda tinha a pedra branca na mão. E havia outra no chão o que era estranho. Nunca tinha visto pedras iguais àquelas. Senti um formigueiro na pele. Harry tê-las-ia deixado para mim? Avancei lentamente, com os olhos a analisar o chão. De cada vez que encontrava outra pedra, o meu coração dava um salto. O rasto conduziu-me através das àrvores até uma clareira que me pareceu um óasis em pleno deserto. Aquele espaço encantador no meio do bosque era tão surpreendente, que estava disposta a acreditar que tinham sido as fadas a dispor todos oselementos de um forma tão harmoniosa. O rasto tinha chegado ao fim. Continuei a procurar, sem querer acreditar que Harry me tivesse deixado naquele impasse.

Protegi os olhos e contemplei a paisagem mais ao longe. Havia uma ponte de tábuas que cruzava um ribeiro estreito e sinuoso, já seco. De súbito, veio-me à ideia a história contada por Liam: "Orfeu foi autorizado a atravessar o rio Estige." As pedras tinham o toque suave dos seixos da praia, como se a água os tivesse amaciado. Encaminhei-me para a ponte. Devia ter existido alguma espécie de jardim cercado do outro lado. Conseguia distinguir uma sebe de vegetação compacta. Fiquei tensa ao ouvir um barulho, um rosnar grave e ameaçador que me deixou com os cabelos em pé. Fiquei paralisada, com os músculos hirtos e a força a fugir-me das pernas. 

Do outro lado da ponte estava um cão preto de tamanho colossal. Arqueava o dorso, com os pêlos eriçados e os dentes à mostra, repuxando os lábios numa rosnadela enraivecida. Não me atrevia a dar meia-volta e fugir, pois tinha a certeza de que isso me tornaria um alvo móvel mais fácil. Fui recuando silenciosamente, sem fazer movimentos bruscos, contudo a cada passo que dava, o cão avançava, espumando de ansiedade. Ele preparava-se para me atacar, sem dúvida alguma. Estiquei as mãos para trás, desviando o mato e os arbustos até me esconder. Continuava demasiado assustada para virar as costas à criatura, pelo que continuei a recuar devagar, evitando fazer o mais pequeno ruído. Mal ousava respirar. O meu dedo enfiou-se numa argola de metal pendurada num pequeno ramo. Trouxe-a comigo, mas só arrisquei a olhar para ela quando já estava longe o suficientemente longe para me sentir em segurança. O sangue gelou nas minhas veias. Era uma placa de identificação para ca~es em metal. O nome que ela tinha gravado era "Cérbero". 

Não olhes para trásOnde histórias criam vida. Descubra agora