Capitulo 26

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Nessa noite, ao contrário do que era costume, o meu sono foi profundo e reparador. Quando acordei, o edredão leve que me tapava quase não tinha saído do lugar, como se não me tivesse mexido durante a noite. Liam tinha-me deixado com a recomendação de manter todas as portas e janelas fechadas, mas esses receios pareciam ridículos numa propriedade cercada, numa manhã luminosa de verão. No interior, aquela parecia uma casa em ponto pequeno para as crianças brincarem. Depois da grande escala do apartamento de Harry, com o som a ressoar nos tetos elevados, eu esperava sentir-me enclausurada, mas a sensação que tinha era a de estar envolvida por um cobertor quentinho. Caminhei lentamente em redor, com os pés descalços a pisar os ladrilhos já aquecidos pelo sol. Não havia poeira no chão, o que me levou a pensar que alguém tinha vivido ali até há pouco tempo. Não devia ter sido Harry, porque havia sem dúvida um cheiro feminino, a qualquer coisa floral e já fora de moda.

Não levei muito tempo a concluir que tinha um problema logo à partida. Liam tinha-me convencido a não trazer nada comigo. Esta era uma das raras ocasiões em que me arrependia de não dar ouvidos aos conselhos da minha mãe em relação a levar roupa interior extra para qualquer emergência que ela teria em mente. Pensei pedir umas roupas à irmã Catherine, mas isso era escusado, a não ser que me apetecesse por capricho andar vestida com o hábito de freira sobresselente.

Deixaram-me um bilhete, enquanto tomava duche. Tinha apenas três palavras: “pequeno-almoço lá fora.” Abri a porta. No degrau, tinha sido colocado um pequeno cesto com pãezinhos, compota, manteiga e café. Sentei-me na pedra fria, a partir bocados de pão estaladiço e a cobri-los de compota. Tive companhia. Os pássaros e as lebres eram mansos e precipitavam-se sobre qualquer migalha que eu deixava cair.

Respirei fundo e peguei no telemóvel. Tinha de dizer alguma coisa a Louis. Enviei-lhe uma mensagem, a dizer que precisava de algum espaço para pôr a cabeça em ordem e esclarecer o desaparecimento de Harry. E que voltaria a contactá-lo dentro de pouco tempo.

Quando me dirigia para a Casa Benedict e procurei Eurídice, fiquei paralisada a meio do caminho. Ela estava de novo à vista, só que, desta vez, encontrava-se do lado oposto do bosque. Era óbvio que Liam estivera bastante ocupado. Ele tinha decidido que ela devia estar junto de Orfeu, e devia estar a encurtar a distância entre os dois. Ou estria a deslocá-los em direcção á ponte, para o sítio onde eles deviam estar? Por muito que ele pensasse que era demasiado arriscado ir até lá, eu tinha de dar uma vista de olhos, para o caso de Harry me ter deixado alguma coisa. Este era o momento oportuno, antes de me convencerem a desistir outra vez. Encaminhei-me para o salgueiro-chorão e rumei em direcção à clareira. Parei a uma distância segura e trepei para o ramo mais baixo de uma árvore onde dispunha de um ponto de observação.

Senti uma pontada mo estômago. Cérbero andava ali, de um lado para o outro, ainda maior do que eu me recordava. Continuavam presentes na minha memória as perfurações no pescoço de Liam. Quando o seu objectivo era matar, os cães procuravam atingir a garganta, e eu sabia pelo pai que aquela raça era diferente das outras. A partir do momento em que eles cravavam os dentes na vítima, as mandíbulas imobilizavam-se e era difícil separá-las. Não ia conseguir atravessar a ponte de manheira nenhuma. Porque teria o cão ficado? Aquilo não fazia sentido, Liam era tão categórico sobre o facto de o cão estar sempre ao ado do pai, que isso implicava que este o deixara ficar ali deliberadamente. Isso também significava que o pai podia estar a viver perto dali. Talvez a Senhora Benedict não tivesse feito confusão ao dizer que o Cérbero estava à espera para se juntar ao dono. Tinha de contar a Liam.

Quando me dirigia de novo para a casa, tive uma ideia súbita; se eu não podia atravessar a ponte, o mesmo acontecia com Harry, por isso, aquele era um sítio com que não tinha de me preocupar ao seguir os seus passos.

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