Tinha frio. Parecia ter passado tanto tempo desde que inha tido frio a valer, que a sensação me apanhou de surpresa. Tinha a roupa húmida e estava a tremer. Havia um barulho esquesito mesmo ao pé de mim, e precisei de um minuto para descobrir que era a minha respiração abafada; tinha a cara enterrada na terra orvalhada. Devia ter chovido. Consegui sentar-me, fletindo os músculos para descontrair as articulações. O braço doís-me e uma olhadla de relançe revelou-me uma contusão impressionante do tamanho de um punho. Atordoada e confusa, tentei reviver a sequência dos acontecimentos. Quando vinha de regresso à casa, tinha parado para ver Eurídice. Teria caído e batido com a cabeça?
Havia outra coisa estranha; começava a anoitecer, o que significava que eu tinha estado inconsciente durante horas. Na verdade, o que eu devia fazer era voltar para casa, mas ainda sentia a cabeça a andar à roda e o pôr do sol era magnifico, com as tonalidades violeta e rosa a rodear o semicirculo de fulgor radioso. Contemplei-o durante minutos, tentando perceber o que era aquilo. O halo de fogo elevava-se, em vez de declinar, e os raios quentes salpicavam a erva debaixo das àrvores. Olhei para o telemóvel, e o meu coração palpitou de confusão e espanto. Eram cinco e meia da manhã. O dia não estava a acabar mas sim a começar. Devia ter ficado ali a noite inteira, e o que havia na erva e enchia as flores desabrochadas como cântaros minúsculos e acetinados não era chuva, mas sim orvalho. Devia ter perdido doze horas de sono.
Um profundo sentimento de mágoa nasceu dentro de mim, ao reviver o meu sonho. Tinha sonhado que estava ali presa há anos, a tentar reencontrar-me com Liam. As estações passavam e eu continuava a procurar sob o sol escaldante, a chuva torrencial, vendavais e tempestades de neve. Debaixo dos pés, sentia a macieza do sol com as pétalas do verão, e, depois, a sua dureza de ferro com a geada. E Harry fazia parte do sonho. Intuía a sua presença tão intensamente como se, neste momento, o tivesse à minha frente. Ele empunhava um foco luminoso, uma chama a arder na extremidade de um archote de madeira, que vacilou até se extinguir quando ele se refugiou numa sucessão de túneis. Harry tentava indicar-me o caminho, primeiro de forma encorajadora e, em seguida, com uma raiva cada vez maior face à minha recusa. A pressão firme que ele exercia sobre o meu braço adquirira depois a força de um torno, à medida que o túnel descia. Retorci-me para me libertar e os dedos dele cravaram-se na minha pele. O pânico não me deixava respirar e comecei a arranhar-lhe o rosto atraente, marcando-lhe as faces e o pescoço com golpes profundos, como se um animal selvagem o tivesse atacado.
Levantei-me com dificuldade, estremecendo com aquela recordação. Ia fazer o caminho até à casa para ver se Liam estava acordado e se poderia lançar alguma luz sobre as horas que tinha perdido. Precisava de saber o que me tinha acontecido. Tinha de haver uma explicação. Tentei controlar o meu medo crescente, ao pensar que já tinham deixado de existir explicações racionais; aquele sitio ultrapassava o dominio da realidade. Controlei um soluço de pavor. Sem refletir, passei a mão pelo rosto de Euridice e os meus dedos detetaram lágrimas de mármore prefeitas nas quais não tinha raparado até então. Uma árvore ali próximo estava manchada com uma substância escura e detive-me a examiná-la, receando ser o meu sangue. Quando a toquei com os dedos, as minhas unhas incrustaram-se de lascas que não tinham cor ou a textura do sangue. Que diabo estava a acontecer? Segui em frente num passo vacilante. O carro de Liam estava estacionado em frente à casa, e recordei a noite anterior com a necessidade urgente de estar com ele. Ela não tinha decrescido, tornando-se antes mais intensa. Se, ao menos, ele surgisse de novo na varanda, com o calor do sono...
A porta estava aberta, mas não havia vestigios de alguém nas proximidades. Entrei no átrio e fiquei à escuta com uma sensação de arrepio. No meio do silêncio, o som dos suspiros era particularmente melancólico e, de vez em quando, parecia ser infiltrado por uma palavra impercetível. Avancei cuidadosamente em direção à porta oculta, apurando o ouvido. Uma voz grave resmoneou: "Jessy". Era a voz de Harry e tinha o mesmo tom áspero do meu sonho. o meu coração palpitou com violência. Soube que ele estava perto. Era uma sensação igual è que tivera antes. Como se esta fosse a palavra mágica, abriu-se uma pequena fresta no lambril. Aquele era o momento em que Harry ia aparecer e ser finalmente apanhado. Já seguira os seus passos tempo suficiente. O jogo tinha chegado ao fim.
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Não olhes para trás
FanfictionDurante toda a sua vida Jessy foi atormentada por Harry, o seu irmão manipulador. Agora ele desapareceu; no entanto, não parou de a perturbar. Quando a sua mãe autoritária a obriga a ir á procura do irmão, Jessy encontra uma série de pistas sisnistr...