A porta estava bem fechada ou tinha inchado com o calor, e fui obrigada a dar-lhe um safanão com as duas mãos. Senti de imediato o aroma do ar fresco e uma leve brisa. O som de algo a raspar deixou-me paralisada, mas percebi rapidamente que se tratavam apenas de pombos. Harry tinha-me contado que eles faziam ninho no rebordo da frente do relógio. Outra pessoa qualquer teria reclamado, mas ele afirmava que gostava de os ouvir porque lhe exprimiam o som da alegria e da liberdade.
Louis estava logo atrás de mim, com a palma da mão apoiada nas minhas costas. Reparei nas pegadas em cada degrau coberto de pó: alguém estivera ali há pouco tempo. Um profundo sentimento de pavor instalou-se dentro de mim. No cimo deparámo-nos com um espaço pequeno e circular, deserto, à excepção do pó e cascalho por todo o lado, algumas penas e lascas de madeira de um banco partido. Fiquei tão aliviada, que as minhas pernas deram subitamente de si e tive de me agarrar à parede para me apoiar. Louis apontou para cima, indicando umas escadas ainda mais estreitas, que conduziam ao campanário.
- Ainda bem que a torre está vazia. – afirmei, com a dor torturante no estômago a diminuir lentamente.
Louis concordou com um aceno de cabeça.
- Por que razão ninguém tentou consertar o relógio? – especulei. – A operação não me parece muito complicada. Não percebo nada de mecanismos de relógios, mas não se trata exactamente do Big Ben.
- A vista é magnífica. O Harry tinha muita sorte. Mas tinhas dito que ele não queria sair de casa, não era?
- Foi uma das condições do meu pai. Para continuar a sustentar o Harry financeiramente, ele tinha de ser autónomo noutros aspectos – escrevi distraidamente o meu nome na poeira. – O meu pai desejava afastá-lo da minha mãe. Ela ama-o demasiado.
Louis lançou-me um olhar mortal.
- Não me parece que seja possível amar alguém demasiado.
Fiquei furiosa comigo mesma, porque o que eu tinha querido dizer era “Ela é demasiado tolerante com ele”, só que a verdade falara mais alto.
- Por vezes o amor não é assim tão saudável – foi a única explicação que consegui dar.
Senti uma onda de tristeza incrível, ao recordar algo que Harry me dissera uma vez: que tinha encontrado um lugar para afastar o zumbido que sentia na cabeça. Tinha a certeza de que ele se referia àquele sítio. Era fácil imaginá-lo a observar as estrelas e a reflectir sobre todas as coisas que o tinham deixado deprimido, o que era quase tudo. Devia sentir-se a pessoa mais solitária da terra.
Louis apertou-me o ombro.
- Anda, vamos embora. Podes oferecer-me um café.
Lançava um último olhar ao interior do relógio inactivo, desejando conseguir parar o tempo com a mesma facilidade, quando os meus olhos captaram qualquer coisa branca de repente. Já ouvis os passos de Louis nas escadas e resisti ao impulso de o chamar de volta. O mostrador do relógio era transparente e eu estava a olhar para a imagem invertida dos números, mas havia um pedaço de papel preso ao eixo entre os ponteiros. Só tinha dado por ele porque tínhamos afugentado um grupo de pombos e o movimento das asas fizeram o papel agitar-se. Mas agora que o tinha visto era impossível ignorá-lo.
Havia um intervalo de um metro, pelo menos entre onde eu estava e o mostrador do relógio. Em tempos existira uma plataforma que possibilitava o acesso, mas neste momento havia simplesmente uma descida a pique. Espreitar para baixo fez-me sentir vertigens instantaneamente. O papel não estava desbotado, pelo que devia ter sido ali colocado há pouco tempo. Teria sido Harry a deixá-lo? Debrucei-me s obre o vazio e agarrei-me a um gancho na parede em busca de apoio adicional. O corrimão de madeira encaixou-se nas minhas ancas quando lhe testei a resistência. Ouvi um leve estalar, mas ele era forte e descobri finalmente a vantagem de ter os braços compridos. Estava tentadoramente perto; mais uns milímetros e conseguia. A madeira voltou a estalar, com um som ligeiramente sinistro, mas aguentou-se sob o meu peso e senti a confiança aumentar, por isso dei um impulso em direcção ao papel.
O chão fugiu-me dos pés, perdi o equilíbrio e agitei as mãos no ar enquanto procurava desesperadamente agarrar-me a qualquer coisa firme. Fiquei a balançar, sustendo-me na trave mais baixa do corrimão, com os dedos dormentes e os braços deslocados. O tempo abrandou. A minha mente desprendeu-se e a minha consciência foi invadida por todo o tipo de coisas que circulavam na minha cabeça. Alguém mais pequeno e flexível talvez conseguisse dar balanço às pernas para voltar de novo para o passadiço, mas eu era demasiado desengonçada para ser uma boa ginasta. Não consegui gritar, porque se tinha instalado uma paralisia estranha e eu sabia que o esforço iria esgotar a pouca força que me restava.
Quem sentiria a minha falta? Quero dizer, sentir realmente a minha falta? Agora que estávamos no verão e as aulas tinha acabado, até a minha amiga Sara se mostrava mais distante. Não sabia ao certo porquê; depois de anos de proximidade, instalara-se entre as duas uma tensão inexplicável para mim. Era uma pena não sentir qualquer atracção por Louis; eu sabia que ele devia ter alguém que gostasse dele da mesma maneira. Talvez a minha descobrisse, por fim, a existência de uma filha que precisava dela, mas seria tarde demais. Não tinha chegado a saber o resultado dos exames, não me tinha apaixonado, feito uma tatuagem, subido ao topo do Empire State Building, visto a Grande muralha da China. O rapaz da praia da esquadra de polícia veio-me inesperadamente à ideia. Talvez ele fosse um mensageiro a avisar-me de que este era o dia, o dia de que eu andava a fugir. Não devia ter sido tão dura com ele. Um rapaz com o cabelo beijado pelo sol e a cara atraente tentara avisar-me sobre a minha morte eminente daí a poucas horas e eu pregara-lhe uma descompostura. “É sempre mais tarde do que imaginas”.
Fez-se um momento de claridade, enquanto eu antecipava a queda e conseguia prever os ferimentos: pernas partidas, bacia destruída, lesões internas, fractura no crânio… as minhas hipóteses eram ridículas. De repente a música de um milhar de sinos ressoava nos meus ouvidos. Nem ouvi Louis, até ele se assomar por cima de mim, com o rosto terrivelmente desfigurado e a boca a abrir e fechar. Parecia que estava a ver televisão com o som desligado e quase desatei a rir, mas a sensação era demasiado dolorosa.
Louis tentou puxar-me pelos pulsos. Por um segundo, os olhos dele fixaram-se nos meus e vi o desespero reflectido ali. Era impossível ele conseguir aguentar o meu peso e o tempo estava a esgotar-se; os meus braços estavam adormecidos que deixei de os sentir ligados ao resto de mim. Ele desapareceu do meu raio de visão e eu fechei os olhos á medida que deslizava para fora do meu corpo. Tudo acabaria em segundos. Louis devia ter regressado porque ouvia uma voz próxima, mas havia uma sensação estranha de calma interior a entranhar-se dentro de mim. Os meus dedos inchados e rasgados à medida que a madeira os corroía, perderam o seu ponto de sustentação e eu escorreguei ainda mais.
Por fim com um último fôlego, deixei-me cair o vazio atrás de mim, aguardando a sensação de queda. Só que ela nunca chegou. Em lugar disso, descobri que me movia para cima, com um par de braços fortes a suster-me pelo tronco, quase a esmagar-me, e sentindo o bater de um coração tão sonoro como o meu a comprimir-me o peito. Não parecia possível, mas fui arrastada para o chão firme, um peso morto sem poder fazer alguma coisa para ajudar. O meu corpo acabou por ficar deitado e aninhado em posição fetal, incapaz de se move, com a cara coberta pelas mãos ensanguentadas. A respiração ofegante de Louis estava algures perto de mim mas eu ainda não tinha recuperado o sentido de orientação e o mundo continuava a girar. Um eco obsessivo do meu passado ressoou na minha cabeça: “Eu não volto atrás no que prometi, Harry. Juro por tudo o que é mais sagrado.”
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Não olhes para trás
Fiksi PenggemarDurante toda a sua vida Jessy foi atormentada por Harry, o seu irmão manipulador. Agora ele desapareceu; no entanto, não parou de a perturbar. Quando a sua mãe autoritária a obriga a ir á procura do irmão, Jessy encontra uma série de pistas sisnistr...