Capítulo 43

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Anastasia

É a primeira vez que me sinto aliviada de acordar sozinha.
A conversa que tive ontem à noite com Nate estava me tirando o sono.
Quando ele me acordou e disse que ia ver Faulkner, eu não insisti para ele
ficar na cama.
Mesmo sem ter conversado direito, eu sabia que ele estava chateado e
provavelmente se sentindo culpado. Ele tem me mandado mensagens sem
parar desde quando saiu: desculpa, justificativa, desculpa, textão, desculpa. É
cansativo. Mas eu ignoro Nate e coloco minhas preocupações de lado
enquanto vou falar com meu segundo — talvez empatado em primeiro —
homem favorito.
Digito o código quando ele grita “pode entrar” e vejo Henry sentado no
chão com tintas e uma tela imensa. Tomo cuidado para não atrapalhar seu
processo quando me sento ao seu lado, mas fico perto o bastante para ele ter
que falar comigo.
— Henry, tem alguma coisa que você queira conversar comigo?
Ele balança a cabeça, definitivamente não. É um não muito firme, mas
nada convincente, e ele me olha de relance cada vez mais até que enfim larga
o pincel.
— Não consigo parar de pensar nisso.
— Me diz por quê. Eles me examinaram várias vezes. Juro que estou bem.
— Eu comecei a pesquisar as estatísticas de quantas pessoas caem em
lagos congelados, e quantas morrem por causa disso. Depois, pesquiseiquantas pessoas se machucam seriamente na patinação artística e não
consegui parar de pensar que tudo isso pode acontecer com você.
— Ah, Henry.
— Não consigo parar de pensar nisso, Anastasia. Você quase morreu. Eu
não sei como parar.
— Me desculpa por ter te assustado. Eu também fiquei com medo, mas
juro que estou bem e que não vai acontecer de novo.
— Por favor, não patine mais em lagos congelados a céu aberto.
— Eu não posso prometer isso, mas preciso que você me prometa que vai
parar de procurar estatísticas. Quer um abraço?
Ele pensa sobre a minha oferta, morde o lábio um pouco, mas depois
balança a cabeça.
— Não. Eu prometo tentar parar de olhar. É só que às vezes não consigo.
É como se, tipo, depois que eu penso nisso, fica enfiado ali e cada vez mais
fundo, e depois não consigo tirar. Eu odeio isso em mim e não sei por que
faço isso.
— Você sabe que eu te amo, né? E não tem nada que eu odeie em você.
— Eu sei, e é por isso que eu me preocupo com você. Eu nunca tive isso
que temos. — A confissão dele me deixa sem palavras. — Não quero perder
isso.
Eu o observo pintar até não ter mais tempo e precisar ir me arrumar para
me encontrar com Aaron, e mesmo assim, é difícil deixá-lo ali.
Parece que estou indo para uma entrevista de emprego quando entro no
escritório de Brady.
Aaron parece tão desconfortável e nervoso quanto eu, o que faz eu me
sentir um pouco melhor. O escritório de Brady é pequeno, mas a mesa é
grande o bastante para eu e Aaron nos sentarmos em lados opostos e a
treinadora na ponta, como uma advogada de divórcio.
— Obrigada por vir, Tasi. Eu sei que não mereço o seu tempo.
Brady resmunga imediatamente.
— Vamos maneirar no drama, Aaron.
Eu tento ser indiferente e não reagir.— Você tem a minha atenção. O que quer dizer?
— Eu fui cruel com você, e você não merecia isso. — Ele se senta ereto na
cadeira e torce os dedos. — Eu não fui o parceiro ou amigo que você merece.
— Você sabe o que ainda não disse para mim? — Mantenha a calma. —
Você não pediu desculpa. Você não disse: “Me desculpa, Tasi. Me desculpa
por ter te julgado e chamado de puta. Me desculpa por ter criado um
ambiente tão tóxico que você saiu de casa. Me desculpa por ter falado mal
de você para todo mundo.”
— Anastasia, por favor — diz Brady. — Estamos aqui para consertar as
coisas. Eu sei o quanto vocês se importam um com o outro. Vamos nos
concentrar nisso.
— Ele disse que ninguém poderia… — Minha voz falha. — Ele disse que
ninguém poderia me amar se nem meus pais biológicos me amaram. Ele te
contou isso, treinadora? Quando disse que queria consertar as coisas?
— Aaron. — O rosto de Brady fica pálido, e sua voz, fraca. — Por favor,
me diga que você…
Ele enfia o rosto nas mãos.
— É verdade, treinadora. Eu disse tudo isso e muita coisa pior. Eu sinto
muito mesmo, Anastasia.
— Eu te defendi tanto, Aaron — digo, sem emoção. — Quando o seu
comportamento fazia as pessoas acharem que você era um babaca, eu dizia
que elas não te entendiam. Ao mesmo tempo, você estava falando por aí que
sou uma má patinadora e que estava tentando dar um golpe da barriga no
Nate porque sou pobre. Você entende o quanto isso é terrível? O que eu fiz
para você me odiar tanto?
Isso é o suficiente para chamar sua atenção, e ele finalmente olha para
mim de novo. Seu rosto está pálido: ele está pensando na resposta
apropriada, porque não sabia que eu sabia disso.
— Meu pai teve outro caso. Dessa vez a amante ficou grávida, e minha
mãe finalmente expulsou meu pai de casa. Ela tem a nossa idade, Tasi.
Entende como isso é bizarro? Eu vou ter um irmão e a mãe é alguém que eu
poderia ter namorado.— Sua mãe não merece ser tratada assim. Nunca mereceu. Mas não
entendo o que isso tem a ver comigo.
— Você não estava por perto! Eu precisava de você, precisava do seu
apoio, e você sumiu. Você ia para festas e saía com caras que nem gostava.
Eu me senti sozinho, e isso me deixou com raiva de você.
Tanta dor, tantas lágrimas, tanto sofrimento. Todos os sentimentos de
não me achar boa o bastante, me perguntando o que tinha feito para
merecer isso, tudo porque ele não conseguia me dizer qual era o problema.
— Fiquei tão chateado com você por não ser uma boa amiga que acabei
me tornando um amigo pior ainda. Não espero que me perdoe
imediatamente, mas quero merecer seu perdão. Eu sei que vai demorar, e
tenho uma ideia de como resolver.
Fique calma.
— Tudo isso são palavras, Aaron. Não significam nada.
— Tem uma terapeuta aqui em Los Angeles chamada dra. Robeska. Ela é
especializada em casais, mas não de um jeito romântico — ele explica. —
Pessoas como a gente: duplas, colegas de quarto. Minha mãe disse que iria
pagar por algumas sessões, depois que contei o que fiz. Ela disse que isso
pode ser um recomeço para todos nós.
Brady acena com a cabeça, empolgada, o que me irrita mais ainda,
porque foi para ela que Aaron ficou sabe-se lá quanto tempo falando tanta
merda de mim.
— Boa comunicação é essencial para uma parceria. Vocês passaram por
meses difíceis, e se essa parceria vai continuar, vocês precisam dar um jeito
nisso.
Ele sabe o que está fazendo, que é o que mais me irrita. Saber que ele está
me atingindo com algo que não posso recusar. Eu sempre falei dos
benefícios da terapia desde que nos conhecemos, principalmente para
convencê-lo a ir e resolver seus problemas. Depois de tudo que aconteceu,
ele está tentando me manipular.
— Lola disse que você foi liberado para patinar. É verdade?
Ele acena com a cabeça antes mesmo de eu terminar minha frase e
levanta o braço ruim, movendo-o para mostrar que está bem.— Recebi a alta do médico. Estou pronto quando você quiser… Então,
terapia?
— Eu vou ter que pensar no assunto, Aaron. É um compromisso muito
grande, e você me magoou. Magoou muito as pessoas ao meu redor, pessoas
que eu amo.
— Você já me amou também — diz ele, sem emoções. — E eu te amo…
como amigo, claro.
— Acho que a melhor coisa a fazer é nos prepararmos para o campeonato
nacional. Não tenho certeza de que posso ser sua amiga de novo, mas
podemos manter nossa parceria profissional.
— Se eu pudesse voltar atrás, eu voltaria, Tasi. Mas não posso, e eu ainda
quero ter uma amizade com você, assim como a parceria, mas preciso
merecer o seu perdão do jeito certo. — Ele faz uma pausa dramática para
respirar. — Provando que sou melhor do que quem eu era. Vou te dar tempo
para pensar sobre a terapia. Espero que faça a escolha certa. Eu sinto muito
mesmo, e vou pedir desculpas quantas vezes precisar.
Brady faz um discurso sobre trabalho em equipe e, quando saio do
escritório, estou cansada e irritada, odiando a decisão de ter escolhido
patinar em dupla. Me sinto sobrecarregada pelos sentimentos das outras
pessoas, o que é difícil porque também tenho muitas questões e
sentimentos.
Não sou perfeita. Estou tão longe de ser perfeita que chega a ser
engraçado pensar nisso, mas estou fazendo o que posso para ser uma boa
amiga. Então, ouvir que tudo isso aconteceu porque supostamente não
apoiei Aaron é difícil de acreditar.
É óbvio que sei que isso não é verdade, mas Aaron não ia chegar ali e
admitir que nem tentou falar comigo. Emocionalmente, estou questionando
se poderia ter feito algo mais. E agora estou irritada comigo mesma, porque
é isso que ele quer e eu estou caindo.
Esse é o problema das pessoas. Ninguém é uma coisa só: todo mundo
tem coisas boas e ruins. Veja só pessoas como o pai do Nate: ele é o pai que
Nate e Sash precisam? Não. Mas é uma pessoa má? Também não. É a mesmacoisa com Aaron. Eu não ficaria dividida e chateada com alguém que é
completamente ruim.
É nisso que eu e Nate temos opiniões diferentes, porque ele só vê o bem e
o mal. Ele não presta atenção na área cinza e complexa entre os extremos. E
o que eu aprendi é que, quando Nate fica chateado com alguma coisa, ele
deixa isso extravasar como frustração.
Quando chego em casa, Nate está me esperando com um lindo buquê de
peônias, e não consigo fingir que não fico feliz com o gesto. Ele me entrega o
buquê e pergunta:
— Como foi?
— Eu não tenho energia para te contar, ter que lidar com a sua reação e
depois você fazer eu me sentir mal comigo mesma. Posso te contar amanhã,
depois de ter processado tudo? Eu preciso beber. Acho que vou sair com a
Lola.
O choque toma conta do seu rosto, e ele se aproxima para beijar minha
cabeça.
— Eu mereço essa. Claro, sim, leve o tempo que precisar. Eu te amo.
— Eu também te amo.
Acho que estou morrendo.
Tem uma juba de cabelos ruivos cobrindo meu rosto quando abro os
olhos contra a vontade. Sinto cheiro de laranjas frescas e, apesar de amar
laranjas, pensar em comer uma agora me faz sentir o gosto de bile na
garganta.
Estou enrolada em um corpo pequeno cheio de lantejoulas e pele clara, e
estou completamente confusa de onde estou, porque essa pessoa com
certeza não é Nathan.
Rolo para ficar de costas, me solto de quem eu espero que seja Lola, e
observo o quarto ao meu redor. Parte de mim fica preocupada por um
segundo pela possibilidade de estar no apartamento, mas este quarto está
arrumado demais para ser de uma de nós.
Um ronco alto vindo da cama faz eu me sentar, depois cubro minha boca
quando o movimento me dá ânsia de vômito. Ver o rosto de Robbiedormindo me deixa mais confusa, mas meu cérebro cheio de álcool deduz
que estou na cama de Robbie e, pior ainda, com os dois.
Não lembro como cheguei em casa ontem à noite. Bom, só me lembro de
partes, que não me ajudam em nada agora.
Depois de um dia de merda, eu podia sentir a tensão e o estresse saindo
do meu corpo a cada dose que virava; algumas doses depois, e as coisas
começaram a ficar embaçadas. Cada movimento faz meu corpo doer, e por
mais que eu queira subir as escadas e me deitar na cama com meu próprio
namorado, não acho que tenho forças ou a coordenação motora para isso.
Pego meu celular e rezo para que Nate esteja acordado.
NATE
Tá acordado?
Ei, bêbada! Sim, acabei de acordar.
Acho que estou morrendo.
É o que acontece após uma garrafa de tequila.
Por que estou na cama com Lo e Robbie?
Eu tentei te colocar na nossa cama, mas você
disse que eu estava tentando separar vocês duas.
Vocês queriam dormir de conchinha.
Só de pensar em me mexer está me dando
vontade de vomitar. Tenho enjoo por
antecipação.
Ver minhas palavras na tela está me dando enjoo.
Me ajuda.
Quer que eu te carregue aqui pra cima?
Mas você não pode vomitar.
Pode me carregar de leve? Existe isso?
Eu consigo sentir o gosto de sons. Muito sensível.
Estou a caminho para te carregar de leve.
Ouço passos pesados na escada depois de ouvir a porta do quarto dele
fechar, e ainda não consigo me mexer. A fechadura da porta apita quandoele digita o código e entra, naturalmente lindo, só de cueca. Eu quero
observá-lo, admirá-lo, mas, quanto mais ele se mexe, pior eu fico, então
fecho os olhos com força.
— Estou tentando não me sentir ofendido com a sua careta.
— Você é uma obra de arte, amor, sério. Dez de dez, deus do sexo. Mas
ver você se mexer tão rápido está me dando ânsia de vômito — digo com os
lábios apertados.
— Deus do sexo dez de dez? Acho que alguém ainda está um pouco
bêbada. — Seus braços fortes me pegam e me puxam para seu peito sem
dificuldades.
— Meu Deus, para de se mexer. — Eu gemo, mantendo a palma da mão
colada na boca. — Como posso estar bêbada e de ressaca?
— Você vai se sentir melhor depois de um Tylenol e um banho. Eu
imagino que não queira ir malhar comigo hoje de manhã?
Quando encaro seu rosto absurdamente lindo, ele está tentando não rir, o
que é uma boa ideia, porque o movimento da risada pode fazer com que eu
vomite no seu peito.
Ele anda lentamente pela cozinha e me senta no balcão.
— Você está cheirando a McDonald’s e arrependimento. — Ele abre uma
gaveta e pega o analgésico.
— Eu comi McDonald’s ontem? Ou costumo cheirar a Big Mac?
Ele tira o cabelo embaraçado do meu rosto e olha para mim de um jeito
tão amoroso que, por um segundo, esqueço que estou parecendo um
gremlin que mora em um lixão.
— Você comeu vinte nuggets em quatro minutos. Era como se estivesse
numa competição de quem come mais rápido, mas era a única competindo.
Nunca me senti tão apaixonado por você. — Ele me dá um copo d’água e
coloca dois comprimidos na minha mão. — Você não se lembra de ter
chegado em casa? Russ buscou vocês porque ele estava sóbrio. Você o forçou
a levá-la para comprar comida.
— Eu gosto do Russ.
Nathan ri para si mesmo e esfrega as mãos nas minhas coxas enquanto
tomo os comprimidos.— Eu sei disso. Você disse isso muitas vezes. Chamou ele de “benzinho”
na frente de todo mundo. Adivinha do que o pessoal está chamando ele
agora?
Ah, não. Coitado do benzinho.
— Ops.
Ele me pega de novo e me carrega escada acima, com cuidado para não
me balançar demais.
— Ops mesmo. Coitado, mas ele vai superar, relaxa. Acho que ele vai vir
morar aqui ano que vem, então você vai ter muitas chances de compensar
isso. Acho que Russ e Henry estão ficando amigos.
Nate me coloca na cama e me enrola nas cobertas até eu virar um
burritinho humano. Ele está sendo muito cuidadoso, e neste momento é
difícil pensar nas nossas diferenças.
— Nathan?
— Sim?
— Eu preciso vomitar, mas não consigo mexer os braços nem as pernas.
Ele começa a me desenrolar, desesperado, e fica olhando enquanto corro
até o banheiro. Não sei o que ele faz enquanto vomito violentamente, mas
imagino que deve ter pensado em como gosta de ter uma namorada tão
graciosa.
Nate me dá um banho, me coloca na cama, me traz comida e vai para a
academia, e eu fico na cama, passando mal e lendo um livro.
Eu devo ter dormido, porque dou um pulo quando ele entra no quarto,
todo suado.
— Está melhor? — pergunta ele ao largar a bolsa da academia aos pés da
cama.
Antes da minha soneca espontânea, eu estive pensando sobre as últimas
vinte e quatro horas, e logo cheguei à conclusão que tinha que pedir
desculpas.
— Desculpa por ter sido grossa com você ontem.
— Você pediu desculpa ontem à noite, relaxa.
— Pedi?— Sim, umas trinta vezes. Depois tentou me seduzir, algo que recusei
educadamente. Desculpa. Você estava bêbada demais para fazer qualquer
coisa além de dormir.
Eu me enfio debaixo do edredom e sinto o calor subir pelas minhas
bochechas.
— Não parece algo que eu faria. Tem certeza?
Ele faz um “uhum” e ri sozinho.
— Você foi bem gráfica sobre o que queria que eu fizesse com você. Me
disse que o meu pau é o mais lindo que já viu.
Espiando por cima do meu escudo de edredom, ele parece estar muito
feliz.
— É verdade.
Ele se senta ao meu lado e passa a mão pela minha canela.
— Escuta, você sempre quer que eu seja sincero com você, e eu sou. Está
me incomodando não saber o que aconteceu ontem com Aaron. Podemos
falar sobre isso?
— Claro.
Nathan não fala nada enquanto eu conto tudo. Ele fica sentado em
silêncio, ouvindo atentamente. Quando termino, ele continua em silêncio.
Eu me mexo na cama, ansiosa, cutucando-o com o pé.
— E aí?
— Terapia de casal?
— Terapia de parceiros esportivos.
— Ele está armando alguma coisa. — Nate rasteja para o meio das
minhas pernas e se contorce até apoiar a cabeça na minha barriga. — Eu não
quero te chatear de novo. Nunca é culpa sua, amor. Sinto muito se fiz você se
sentir assim.
— Eu sei.
— Mas eu não gosto disso.
— Sei disso também.
— Estou tentando não fazer com que ele seja um problema entre nós.
Mas eu fico irritado, e é difícil superar isso.
— Nate…— Sim?
— Sai da minha barriga, vou vomitar de novo!

Quebrando o Gelo- Hannah GraceOnde histórias criam vida. Descubra agora