131 - Você.

2 0 0
                                    

Bendito também andava por um corredor de espelhos. Mas os espelhos estavam todos cobertos de algum tipo de vapor, e por isso Bendito ficou muito feliz. Não queria ver seu reflexo, mesmo que fosse o de antes da maldição.

– Onde é aqui? – perguntou Bendito.

A estrada da memória. – responderam os espelhos.

Tudo ficou escuro de repente. Bendito tentava olhar para algum lugar, mas tudo era apenas escuridão. Ele ouvia passos e vozes, que o confundiam. Foi quando pequenos pontos brilhantes começaram a surgir no meio do ar, imitando estrelas.

Ela foi para lá. – ouvia uma voz familiar. – E um dia nós vamos também.

O fraco brilho dos pontos iluminava em parte o rosto do meio monstro, como uma esperança.

Por que você não vai logo, então?!

A voz infantil atravessou seus ouvidos como uma flecha. Bendito se virou para o lado, e viu uma forma iluminada, e dois pontos azuis no lugar onde se encontram os nossos olhos.

Você não gosta de mim?!

Eu não quis dizer isso! – a voz do meio monstro soava como a de uma criança também. – Mas eu sinto falta da minha mãe!

Se gosta tanto dela, porque não morre?! Pelo menos meu pai vai poder voltar!

O que?!

Morra! Você é feio! Pelo menos o meu pai era bonito! Eu tenho os olhos dele!

A briga tão infantil e besta ecoava como um fantasma na cabeça de Bendito.

– Por que eu fujo disso? – perguntava ele a si mesmo. – Por que eu fujo de algo tão ridículo quanto isso?! Que tipo de pessoa eu sou? – batia no que achava ser o espelho. – Que diabos estou fazendo aqui? Eu não me importo com ela! Eu não estou nem aí pra Porcelana! Se ela morrer eu nem vou chorar!

Tudo se acendeu. Via-se o reflexo de Porcelana por todos os lados, correndo, brincando, sorrindo, vivendo. Era tão graciosa. Parecia um anjo, apenas por existir. O contraste da voz doce com as palavras cruéis que dizia era doloroso. Ela sentia falta do pai mais do que qualquer coisa, e não calava-se quanto a isso.

Por que só você pode chorar a falta do seu pai e eu não posso chorar a falta da minha mãe? – perguntava o meio monstro para as imagens. – Por que você não pode gostar de mim tanto quanto gosta do seu pai?! Eu não significo nada pra você?!

Ele ajoelhou-se no chão, e se debruçou sobre ele.

Nada? Nada mesmo? – repetia. – Eu não significo nada além de um maldito órfão pra você?! Nada além disso?! Nem seu amigo eu sou?! Nem isso?!

As lágrimas desciam do seu rosto, caindo no chão. Ele não continha os soluços.

Por que você não pode gostar de mim? Por que não pode me deixar chorar contigo e entender a sua dor? Por que não posso me aproximar de você? Por que, Porcelana?! Por que não quer que eu te entenda?!

Aquela sua dor tão pequena tornara-se seu fardo diário. Sentia-se traído. Injustiçado. Por que todos podiam chorar e não ele? Por que todos podiam ser consolados menos ele? Por que todos podiam ser amados menos ele?

Maldito seja eu! Que eu não precise mais sentir! Que eu vire um monstro, e não tenha mais coração!

– Por que você fez isso?! – a voz de Porcelana se aproximou dele. – Por que você fez isso consigo mesmo?! Ein? Me diga... O que te fez fazer isso?! – sentia as mãos dela sob os seus cabelos.

–... Você.


A Cidade do SolOnde histórias criam vida. Descubra agora