🍁CAPÍTULO 01🍁

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🍁Luiz

Eu tinha apenas oito anos. Recife, onde eu vivia, era um lugar de ruas esburacadas, ladeiras e um cheiro constante de maresia misturado com a fumaça das velhas chaminés das fábricas. Eu me lembro do calor, da poeira, e do som abafado dos gritos distantes, cada vez mais frequentes. Morávamos em um bairro pobre, quase esquecido, onde as crianças corriam descalças e as casas eram feitas de barro e madeira. Meus pais, no entanto, eram diferentes dos outros. Eles não eram conformados com a miséria ou com o destino que o Brasil escravocrata parecia ter destinado a todos os pobres. Eles acreditavam em um futuro melhor, e eram fervorosos defensores da abolição da escravatura, ainda que isso os colocasse em perigo.

O Brasil de então era uma terra marcada pela brutalidade da escravidão, onde fazendeiros enriqueciam às custas de milhares de vidas negras que eram brutalmente arrancadas de suas terras e tratadas como mercadoria. No final do século XIX, a abolição era um movimento que fervilhava nas ruas, principalmente nas cidades grandes, como Recife. Meus pais, já comprometidos com a luta pela liberdade, participavam de reuniões secretas e de comícios organizados pelos abolicionistas. Eu me lembro das conversas à noite, quando achavam que eu estava dormindo, sobre o medo de serem pegos, mas também da esperança de que, um dia, todos seriam livres. Mas essa esperança, como eu logo descobriria, vinha com um preço terrível.

Foi em uma tarde abafada que tudo desmoronou. Eu estava brincando na frente da casa quando os primeiros gritos ecoaram pelas ruas. Rebeldes tomavam as ruas de Recife, lutando pela liberdade dos escravos. As forças do governo, sempre a serviço da aristocracia rural e dos senhores de escravos, logo responderam com uma brutal repressão. O sangue corria pelas ruas, e eu, pequeno demais para entender a extensão da tragédia, corri para casa, procurando pelos meus pais.

Eles estavam lá, braços erguidos, prontos para lutar. O olhar de meu pai estava firme, mas seus olhos brilhavam com uma tristeza que eu não compreendia. Minha mãe me pegou no colo e me beijou na testa. "Nunca se esqueça de que lutamos por um futuro melhor", ela disse, antes de me empurrar para o fundo da casa, onde me escondi, sem entender que aquele seria nosso último momento juntos.

O massacre foi rápido e brutal. Rebeliões como essa eram esmagadas sem piedade. Meus pais foram mortos ali, nas ruas de Recife, junto com tantos outros que ousaram sonhar com a liberdade. E eu, uma criança órfã, fui arrancado da minha cidade e levado para Minas Gerais, uma terra desconhecida e cruel, onde eu teria que enfrentar um destino que nenhum menino deveria suportar.

A viagem para Minas Gerais foi uma névoa de dor e confusão. Eu fui levado por parentes distantes, pessoas que pouco se importavam com meus sentimentos, apenas com a obrigação de me entregar a um novo destino. A fazenda de café e cana de açúcar que se revelou diante de mim era vasta e imponente, uma imensidão verde onde homens e mulheres trabalhavam de sol a sol, suas costas curvadas pela opressão do trabalho forçado.

Naquela fazenda, o sistema escravocrata ainda vivia, mesmo após os movimentos que tomavam conta do país. A abolição ainda não havia chegado totalmente ali, e muitos eram forçados a trabalhar sob condições desumanas. Eu, um menino branco e órfão, fui jogado em meio àqueles que trabalhavam nas plantações, tratado com desprezo e indiferença. Embora não fosse oficialmente um escravo, meu trabalho e minha vida ali não eram muito diferentes. Eu via o horror nos olhos dos escravos, via o cansaço nas mãos calejadas e o medo nos sussurros das noites escuras, quando falavam das tentativas frustradas de fuga e das punições impiedosas.

A Casa Grande, onde os patrões viviam, parecia um mundo distante. Lá, os senhores se deleitavam em festas e jantares luxuosos, completamente alheios ao sofrimento que alimentava sua riqueza. Foi nesse ambiente, onde o contraste entre a opulência dos ricos e a miséria dos trabalhadores era gritante, que eu vivi os anos mais difíceis da minha vida.

Meus tios nunca me olharam com afeição. Desde o dia em que cheguei à fazenda, eu sabia que não estava ali por causa de qualquer laço familiar, mas por uma necessidade fria e calculista de usar o meu corpo como mão de obra. Eu era uma criança, e ainda assim, me fizeram trabalhar como se minhas pequenas mãos pudessem competir com a força e a experiência dos escravos adultos. A dor que crescia dentro de mim não era apenas física, era uma dor pela traição, por saber que os únicos parentes que me restavam só viam em mim uma ferramenta para lucrar.

Essa dor logo se tornou insuportável. Em uma noite de calor sufocante, resolvi que não podia mais viver daquela forma. Eu queria escapar, fugir daquele inferno de trabalho incessante e de um ambiente onde o mínimo de amor ou compaixão parecia não existir. Peguei o pouco que tinha - um pedaço de pão velho e um pano sujo - e corri. Meus pés descalços mal faziam barulho na terra batida, e meu coração batia tão forte que parecia querer sair do peito. Eu corria pela escuridão com a esperança de encontrar um lugar onde a liberdade pudesse existir.

Mas o mundo, como eu logo descobri, não era generoso. A fuga foi curta. Não cheguei longe antes de ser capturado pelos capatazes da fazenda. A punição foi brutal. Fui levado de volta, jogado ao chão como um animal e espancado até não conseguir mais me levantar. Cada golpe parecia rasgar mais do que a pele - era minha alma que estava sendo despedaçada. Ali, naquele chão sujo, em meio ao sangue e às lágrimas, eu soube, ainda criança, que o mundo era cruel. Qualquer tentativa de resistência aberta seria esmagada sem piedade. E naquele momento, algo dentro de mim mudou.

A partir daquele dia, entendi que, para sobreviver, eu teria que resistir em silêncio. Eu teria que observar, aprender e esperar. O silêncio se tornou minha arma, e a prudência, meu escudo. Meus olhos já não brilhavam com a ingenuidade de uma criança, mas com a determinação fria de alguém que sabia que o mundo não oferecia bondade para os fracos.

No entanto, foi nos escravos negros que encontrei uma nova forma de esperança. Crescendo entre eles, eu comecei a aprender o que realmente significava ser humano. Em meio à opressão e à violência, vi como eles, que tinham ainda menos liberdade do que eu, resistiam. Não com armas ou fugas desesperadas, mas com amor, união e a força de uma cultura que os mantinha vivos. Eles me acolheram, não com palavras ou gestos extravagantes, mas com pequenos atos de bondade que, naquela situação, valiam mais do que qualquer riqueza.

Eu os ajudava a tratar feridas, a lidar com as perdas, a suportar as dores. Quando algum dos nossos companheiros caía, nós éramos os que cuidávamos de suas feridas, tanto físicas quanto emocionais. Nós sabíamos que a fazenda não oferecia cura, apenas mais trabalho e castigos. Assim, nos curávamos uns aos outros da única maneira que podíamos - com paciência, com cuidado, com amor.

A cultura dos negros me fascinava. Nas noites escuras, quando o trabalho cessava e o céu se enchia de estrelas, eles cantavam suas histórias, dançavam seus rituais e contavam sobre suas terras distantes, terras que jamais haviam esquecido. As palavras, as canções, os ritmos que fluíam como um rio antigo, trouxeram-me um senso de pertença que eu nunca havia experimentado antes. Eles me ensinaram que, mesmo na opressão mais profunda, a alma pode ser livre, pode voar para além das correntes que aprisionam o corpo.

Mas o que mais me impressionava neles era a esperança. Enquanto eu carregava um silêncio de resistência, eles carregavam um brilho nos olhos, uma esperança teimosa de que, um dia, as correntes seriam quebradas e todos seriam livres. Era uma fé inabalável, algo que transcendia a realidade brutal que nos cercava. Eles acreditavam que dias melhores viriam, e foi essa crença que começou a moldar quem eu era.

Essa esperança, essa fé em um futuro melhor, se enraizou em mim. Eu sabia que, por mais que o mundo fosse cruel, era possível resistir e, de alguma forma, vencer. Não com a força bruta ou a raiva desesperada, mas com a sabedoria de esperar, de ser prudente e de manter acesa, no coração, a chama da liberdade.

Ao longo dos anos, me tornei um homem silencioso, mas por dentro, eu carregava as lições daqueles que resistiram antes de mim. Aprendi que o verdadeiro poder está em nunca perder a esperança. Mesmo quando o mundo parecia esmagar todas as chances, mesmo quando os castigos eram severos e a liberdade parecia um sonho impossível, eles me mostraram que a resistência é mais do que sobreviver. É manter viva a chama daquilo que nos faz humanos. E foi essa chama que me deu forças para continuar, para esperar e, um dia, talvez, para lutar por um futuro onde todos pudessem ser livres.

Continua...

VENDIDO AO ALFA [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora