🍁Luiz
Assim que as visitas se foram e a casa finalmente voltou ao seu silêncio habitual, pude me dirigir à cozinha. O cheiro da comida que eu havia servido horas antes ainda pairava no ar, e, apesar da fome imensa que me consumia, uma certa amargura tornava cada passo mais pesado. Naquele momento, eu sabia que era o último a comer. Meus tios e os outros empregados já haviam almoçado, e a casa estava novamente em ordem.
Sentei-me à mesa simples, o prato à minha frente. Quando comecei a comer, as memórias das palavras de Leonardo voltaram como uma faca cravada no peito. Cada pedaço de comida que eu mastigava parecia agravar a raiva que estava tentando ignorar.
Eu me lembrava da forma como ele me olhava, a desconfiança em seus olhos e o tom venenoso de sua voz. "Você deve sempre se lembrar de quem você serve." Aquilo ecoava na minha mente como uma ameaça constante.
— Quem ele pensa que é? — murmurei para mim mesmo, empurrando o prato levemente, minha fome agora ofuscada pela revolta crescente.
A imagem de Leonardo, arrogante, sentado à cabeceira da mesa, como se já tivesse nascido com o direito de mandar em todos, fazia o meu sangue ferver. O jeito como ele falava comigo, como se eu fosse um objeto descartável, algo que ele podia esmagar a qualquer momento... aquilo me corroía por dentro.
— "Certifique-se de não se distrair com conversas desnecessárias." — repeti em voz baixa, com um misto de desprezo e fúria, as palavras soando ainda mais repugnantes agora que eu estava longe de sua presença.
Cada palavra, cada olhar de desdém que Leonardo lançava em minha direção só fazia a raiva crescer. Eu sabia que ele me via como uma ameaça, mas não era por causa de qualquer pretensão minha em relação a Alice. Era o seu controle, sua mania de possuir tudo e todos ao redor. Ele tinha o poder agora, mas eu não suportava mais a ideia de ser tratado como algo inferior, um "branco escravo", como ele mesmo me chamou.
Engoli mais um pedaço de comida, mas já não tinha gosto. Só conseguia pensar na injustiça de tudo aquilo. Leonardo tinha tudo na vida de bandeja — riqueza, poder, prestígio — e ainda assim sentia a necessidade de me humilhar, de me colocar no meu "devido lugar".
— Como ele se atreve... — sussurrei, apertando o garfo com tanta força que senti meus dedos doerem.
Meus pensamentos estavam tão mergulhados em raiva que não percebi quando um dos meus enpregados entrou na cozinha. Ele se aproximou com uma expressão cansada, sem saber das lutas internas que eu enfrentava.
— Luiz, tá tudo bem? — perguntou ele, observando meu rosto tenso.
Levantei o olhar para ele, forçando um sorriso.
— Sim, só estava... pensando. Acho que preciso de um tempo para mim.
Ele assentiu, sem fazer mais perguntas. Ele sabia quando era melhor não insistir. Terminei meu prato em silêncio, cada garfada preenchida por pensamentos de vingança silenciosa, por sonhos de uma liberdade que parecia impossível naquela casa onde o poder de Leonardo agora reinava.
Mas algo dentro de mim começava a mudar. Eu não sabia até onde minha paciência iria durar, nem como tudo aquilo acabaria.
A tarde começou a cair quando minha Luísa me chamou na cozinha. Ela parecia apressada, com o avental ainda sujo da louça que lavava.
— Luiz, preciso que você vá até a cidade — disse ela, tirando da gaveta uma lista amassada de compras. — Os convidados comeram quase tudo, e precisamos reabastecer a despensa para a semana. Sr. Leonardo já deixou o dinheiro.
Ela me entregou o papel e um pequeno saco de moedas. Eu olhei rapidamente a lista — farinha, arroz, café, carne seca, entre outros. Eram as compras de sempre, nada de extraordinário.
— Certo. Vou agora mesmo.
Peguei as rédeas da carroça, que estava velha e rangia a cada movimento, mas ainda dava conta do recado. O sol estava a pino, castigando minha pele enquanto eu seguia pelo caminho de terra que levava à cidade. A poeira levantava, fazendo uma nuvem ao redor da carroça enquanto os cavalos trotavam devagar.
No silêncio da estrada, meus pensamentos voltaram a se agitar. O peso das últimas semanas, a perda do Sr. Antônio, o comportamento de Leonardo... Era como se tudo estivesse me esmagando aos poucos. Eu olhava para a vastidão ao meu redor, buscando um pouco de paz.
As árvores que ladeavam o caminho ofereciam uma sombra suave em alguns trechos, e por vezes o som de uma cachoeira ao longe trazia um alívio momentâneo. A paisagem de Minas Gerais sempre me fascinou — as montanhas, os rios, os pequenos pássaros que cantavam nas copas das árvores. Mas naquela tarde, nem mesmo a beleza do lugar conseguia apagar a inquietação no meu peito.
Enquanto a carroça avançava, meus olhos se perderam no horizonte. O céu azul, sem nuvens, contrastava com o peso que eu carregava. Cada árvore parecia sussurrar um segredo antigo, como se as próprias raízes tivessem testemunhado os sofrimentos e as alegrias de gerações passadas.
Passei por uma cachoeira, sua água cristalina refletindo o brilho do sol. Por um instante, pensei em parar, descer da carroça e mergulhar naquela água refrescante, como se pudesse lavar de mim todos os problemas. Mas o dever me chamava, e a cidade ainda estava a alguns quilômetros.
Ao longe, avistei o vilarejo que sempre me trazia uma sensação estranha de familiaridade e distância ao mesmo tempo. A cidade pequena, com suas poucas lojas e o mercado central, era o coração pulsante da região. Eu estava acostumado a ir até lá, fazer as compras e voltar sem demora. Mas dessa vez, algo parecia diferente. Eu não sabia o que era, mas tinha a sensação de que a calmaria do dia escondia algo à espreita.
Os cavalos pararam na frente do armazém, e eu desci da carroça. Entrei na loja com a lista na mão, pronto para cumprir mais uma tarefa cotidiana.
Depois de comprar tudo o que estava na lista, os donos do armazém, sempre solícitos, ajudaram a carregar os sacos de farinha, arroz e carne seca na carroça. O dinheiro que sobrara eu guardei no bolso com cuidado, como se estivesse carregando um pedaço da minha própria vida. Aquela quantia, mesmo pequena, era uma segurança que eu não podia desperdiçar.
Na volta, resolvi passar pelo mercado central. Aquele lugar sempre me trazia um misto de desconforto e curiosidade. As barracas de frutas e verduras coloriam as ruas de terra, o cheiro forte de peixe fresco misturado ao de carne seca invadia o ar. Mas era a outra parte do mercado que mais me inquietava, o lado onde a dignidade humana era posta à venda.
Passei pelas correntes de ferro que balançavam nos postes e vi o amontoado de pessoas negras enfileiradas como mercadorias, olhos baixos e corpos marcados pela dor. Havia homens, mulheres e até crianças. Eram tratados como objetos, como se fossem menos que humanos. O pregão dos vendedores era alto e impiedoso:
— Forte, capaz de carregar peso por horas! — gritou um deles, segurando o braço de um jovem de pele escura, erguendo-o para mostrar os músculos. — Perfeito para o trabalho no campo!
Meu estômago revirou, e a raiva misturada com impotência cresceu dentro de mim. Eu sabia que não havia nada que eu pudesse fazer, mas aquilo me corroía por dentro. Aquelas pessoas, assim como eu, estavam presas a um destino que não escolheram. Eu estava na casa grande, servindo a família Andrade, enquanto eles eram vendidos para qualquer um que pagasse o preço.
Os olhos de uma mulher, em particular, me chamaram a atenção. Ela segurava uma criança pequena, apertando-a contra o peito, como se estivesse tentando protegê-la do mundo ao redor. Seus olhos encontraram os meus por um breve momento. Havia ali uma dor que era indescritível, uma dor que eu conhecia bem — a perda, a impotência, o medo do futuro. Aquele olhar me paralisou por um instante. Minha mente voltou ao dia em que perdi meus pais, e me vi no lugar daquela criança, vulnerável e sem escolha.
Aproximei-me da carroça, tentando afastar o nó que se formava em minha garganta. Eu queria fazer algo, qualquer coisa, mas sabia que o poder não estava nas minhas mãos. No caminho de volta, os rostos que vi no mercado não saíam da minha cabeça. Senti uma onda de misericórdia inundar meu coração, mas também uma angústia profunda. O mundo era injusto, e eu sabia que minha própria liberdade era frágil, dependente dos caprichos de pessoas como Leonardo.
O caminho de volta para a fazenda parecia mais longo do que antes. A estrada de terra, antes tão tranquila, agora era um lembrete constante da realidade cruel à qual muitos estavam presos. Ao longe, já podia avistar os contornos da fazenda Andrade.
Continua...
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VENDIDO AO ALFA [CONCLUÍDO]
FanfictionEm um Brasil escravocrata, onde a liberdade é um sonho distante, Luiz Fernando, um jovem órfão e marcado pela brutalidade da vida, descobre que seu destino foi selado sem sua permissão. Vendido como propriedade, ele agora pertence a Leonardo de Andr...