🍁Luiz
Quando terminei minhas preces, levantei-me e segui até o altar para acender duas velas em homenagem a meus pais. A chama das velas tremeluziu ao contato com o ar, e sentiu-me tomado por uma paz quase intocável, como se, por alguns instantes, eu estivesse realmente conectado a eles, sentindo a presença deles ao meu lado.
Foi quando senti alguém se aproximar, e uma voz rouca e severa daquele momento sagrado:
— Como ousa profanar a casa de Deus com presença sua? — A voz carregava desprezo, e ao me virar, vi que era o pai, um homem de idade, rosto duro, com olhos que me fulminavam de ódio. Aquela hostilidade me pegou de surpresa, me paralisando.
— Desculpe, senhor... eu... só estava aqui para rezar — respondi, ainda tentando entender a razão de tanta ira.
Ele soltou uma risada seca, quase debochada, e olhou para mim de cima a baixo, como se eu fosse algo imundo.
— Um pecador como você, ousando pisar neste lugar santo... Você e o que carrega em seu ventre são uma abominação, um pecado aos olhos do Senhor! — Ele praticamente cuspiu as palavras.
O coração acelerou, e o choque inicial deu lugar a uma raiva que fervia por dentro. Como aquele homem, que deveria acolher e orientar, tinha coragem de tratar um filho de Deus com tamanha crueldade?
— Aguarde-me, senhor padre! Sou um filho de Deus, e tenho o mesmo direito de estar aqui que qualquer um — retruquei, firme, tentando manter a calma.
Mas ele riu, um som frio e desdenhoso, como se minhas palavras fossem uma piada.
— Um filho de Deus? Não se engane, rapaz! Você é filho do demônio, e o que traz para dentro de si é fruto de um pecado capital! Não deveria estar aqui, e sua é presença uma maldição sobre esta igreja!
Aquelas palavras foram um golpe, e senti algo se quebrar dentro de mim. Meu rosto queimou de indignação, e antes que pudesse me controlar, levantei a mão e dei-lhe uma tapa firme no rosto. O som ecoou pelo salão, e as beatas, chocadas, soltaram exclamações de horror.
— Quem é o verdadeiro pecador aqui, padre? Um homem que deveria pregar o amor, mas viver o ódio e o preconceito? O senhor é um velho safado, desprovido de misericórdia! Me respeite, ou não respondo por mim... sabe quem é o pai do filho que eu carrego?
O padre recuou, levando a mão ao rosto onde a tapa havia marcada sua pele. Seus olhos estavam arregalados, mas ainda carregavam uma fúria que não se abalou. Antes que você possa reagir, sinta um empurrão forte nas costas. Fui arremessado contra os bancos da igreja, e minha testa bateu com força em um deles. A dor foi lancinante, irradiando pelo meu braço e, pior, pelo ventre. Um frio cortante me percorreu o corpo, e instintivamente levei as mãos à barriga, em pânico pelo impacto.
— Seu miserável! — ouvi João gritar. Ao levantar a cabeça, vi que ele, meu fiel motorista, havia avançado sobre o homem que me empurraa, um dos serviçais do padre, alto e corpulento.
João partiu para cima do sujeito com a fúria de um leão, e logo estavam trocando socos e empurrões. O barulho ecoava pelo salão da igreja, e as beatas, apavoradas, se encolheram nos cantos, murmurando orações e soltando exclamações assustadas. A fúria de João era quase incontrolável, e cada golpe que ele desferia parecia carregar o peso de uma lealdade inabalável.
— Pare, João... Vamos sair daqui — pedi, com a voz embargada de dor, enquanto me esforçava para me levantar.
Ele ainda olhou para mim, os olhos faiscando de ódio, mas, ao me ver encolhido, segurando a barriga e o braço machucado, deu um último empurrão no homem e voltou até mim, me ajudando a levantar com um cuidado e uma ternura que contrastavam com sua fúria de momentos antes.
— Estamos indo embora! — disse ele, encarando o padre e os fiéis que ainda nos observavam com olhares cheios de reprovação e medo, não por mim ou João, mas por quem poderia matar todos eles, Leonardo.
Cambaleando, saímos da igreja quase sendo enxotados, mas sem abaixar a cabeça. Ao cruzar as portas, sinto uma mistura de amarga de ruptura e desgosto, como se um peso imenso tivesse sido colocado sobre meus ombros. Olhei uma última vez para a igreja, antes de me afastar, prometendo a mim mesmo que nunca mais voltaria ali.
A dor latejava na minha testa, e o sangue quente escorria lentamente pela pele. Estávamos no caminho da fazenda, mas um misto de desespero e pavor tomava conta de mim, e tudo o que eu conseguia pensar era na ocorrência de Leonardo. Ele jamais aceitaria saber que eu havia sido humilhado naquela forma, e ainda mais na igreja, onde eu só queria agradecer pela nossa família.
— Pare... João, por favor, pare o carro — murmurei, com a voz trêmula, e ele confortável encostou.
Assim que o carro parou, abriu a porta, respirando fundo e saindo para o lado da estrada. Meu coração batia tão rápido que parecia querer rasgar meu peito, e eu sentia a visão embaçada, mistura de lágrimas e do calor da dor. João desceu logo em seguida, e, ao me ver em tal estado, mudou-se, preocupado.
— Calma, senhor Luiz... Respira, pelo amor de Deus — disse ele, tocando meu ombro de leve.
Mas eu só consegui balançar a cabeça em negativa, passando as mãos trêmulas pelo rosto e pelo corte na testa, enquanto o sangue continuava a pingar. Era uma dor física, sim, mas a vergonha e o medo eram ainda maiores. Meus olhos estavam fixos no chão, e, por um momento, me senti como uma criança perdida, incapaz de controlar a própria angústia.
— Ele não pode saber, João... — sussurrei, mal conseguindo encontrar minha voz. — Leonardo... ele não pode saber o que aconteceu. Ele vai fazer uma besteira, ele vai... vai me querer defensor e só vai piorar tudo.
João me olhou com um misto de tristeza e compreensão, e suspirou, assentindo lentamente.
— Olhe, senhor Luiz, o patrão tem o sangue quente, isso é verdade... Mas o senhor também não pode chegar lá desse jeito, com a testa sangrando e o rosto cheio de hematomas. Ele não vai acreditar que foi um simples acidente.
Lutei para recuperar o fôlego, respirando fundo, mas as lágrimas continuavam a escapar, involuntárias, e cada vez que pensava no rosto de Leonardo ao me ver naquele estado, mais o pavor crescia. Eu sabia que ele enfrentaria o mundo por mim, mas essa era uma batalha que ele não precisava travar, especialmente com o pai, alguém de tanto poder na região.
— Diga que... diga que eu caí, João — pedi, limpando as lágrimas com a manga da camisa. — Vamos dizer que eu tropecei, que sofri uma queda e bati a cabeça. Eu só preciso... preciso de um tempo para processar isso, e Leonardo não pode saber. Por favor, João.
João concordou com um semblante sério e firme.
— Está bem, senhor Luiz. Se é isso que quero, eu vou ajudar. Mas o senhor precisa de cuidados, e de verdade, antes de voltar para a fazenda. Espere aqui.
Ele entrou no carro, pegou um lenço de tecido e um pouco de água da garrafa que sempre carregava consigo, e começou a limpar o ferimento na minha testa com a paciência e o cuidado de alguém que realmente se importava.
— Vai fazer um pouco, senhor... mas é melhor tirar o sangue antes de voltarmos.
Fechei os olhos, tentando me rir, enquanto ele tocava gentilmente o ferimento. Cada leve pressão que ele fazia parecia tirar um pouco do peso do que eu sentia.
— Obrigado, João. Eu... não sei o que faria sem você — murmurei, sincero.
Ele deu um leve sorriso, o tipo de sorriso que só quem entende de lealdade, e continuou o trabalho em silêncio, concentrado, até que o sangue parasse de escorregar. Depois, me ajudou a voltar para o carro, com um cuidado que me fez sentir, por um breve momento, que tudo ficaria bem.
Apoiei-me no assento, respirando fundo e me convencendo de que Leonardo acreditaria na história. Era só uma queda, eu repetia mentalmente, enquanto voltávamos ao caminho para a fazenda.
Continua...
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VENDIDO AO ALFA [CONCLUÍDO]
Fiksi PenggemarEm um Brasil escravocrata, onde a liberdade é um sonho distante, Luiz Fernando, um jovem órfão e marcado pela brutalidade da vida, descobre que seu destino foi selado sem sua permissão. Vendido como propriedade, ele agora pertence a Leonardo de Andr...