🍁Luiz
O tempo parecia se arrastar enquanto eu continuava a organizar os documentos. Cada papel que passava por minhas mãos trazia consigo uma pequena janela para um mundo de conhecimento que eu nunca havia imaginado acessar. Havia cartas comerciais, contratos de compra e venda, registros de terras e até alguns textos filosóficos e políticos. Eu lia o que podia, absorvendo cada palavra como se fosse um pedaço de ouro em meio à lama.
Em alguns momentos, me perdia completamente, imerso na linguagem formal e nas discussões sobre o Império, as relações comerciais com a Europa, as leis que regiam as terras e as negociações dos grandes fazendeiros. Minha mente parecia explodir em novas ideias, como se cada palavra que eu lia expandisse os limites do meu pensamento. Aquilo era muito mais do que eu poderia ter sonhado, uma educação que poucos na minha condição jamais teriam acesso.
Olhei para a janela ao meu lado e vi que uma chuva forte começava a cair. O som das gotas pesadas batendo no telhado preenchia a casa com um ruído constante. Eu sabia o que aquela chuva significava: os trabalhadores do lado de fora estariam encharcados, suas roupas grudando nos corpos, os pés afundando na lama enquanto tentavam manter o ritmo das ferramentas. O frio e a umidade deviam tornar o trabalho ainda mais insuportável. Meu peito apertou, e meus pensamentos foram imediatamente para os amigos que havia deixado no canavial.
"Eu não posso esquecer deles", pensei. "Por mais que minha situação tenha mudado, eles continuam lá, sofrendo..."
A imagem dos meus amigos de infância, dos rostos marcados pela dor e pelo cansaço, me assombrou. A opressão que vivíamos no campo jamais seria apagada da minha mente. Eu prometi a mim mesmo, naquele momento, que lutaria para que nenhuma criança, nenhum ser humano, precisasse conhecer o que era ser tratado como um escravo. Um dia, eu faria algo para mudar aquilo, para honrar as memórias dos que sofriam e dos que morreram sob o peso de correntes invisíveis.
Enquanto esses pensamentos fervilhavam na minha cabeça, ouvi um ruído suave vindo da cadeira à frente. O velho senhor Antônio, com seus cabelos brancos e o olhar cansado, ergueu a mão, tentando se levantar, mas com dificuldade.
- Luiz Fernando... - sua voz veio fraca, interrompendo minha linha de pensamento.
Imediatamente, deixei os papéis de lado e me aproximei, notando que ele tentava se levantar, mas parecia sem forças.
- O senhor precisa de ajuda? - perguntei, com um tom respeitoso, mas preocupado.
- Sim, rapaz - ele disse com um leve suspiro. - Me ajude a levantar... este corpo já não responde como antes.
Com cuidado, segurei seu braço e o apoiei enquanto ele se levantava da cadeira com esforço. Senti o peso da idade e do cansaço em seus ossos frágeis, e por um momento, me vi refletindo sobre a fragilidade da vida. Aquele homem, tão poderoso e influente, agora dependia de alguém como eu para fazer algo tão simples como levantar-se.
Ele ficou de pé, respirando fundo por alguns segundos antes de me encarar.
- Obrigado - disse, com um tom menos severo do que de costume. - Sabe, Luiz Fernando, você tem sorte de ser jovem. Um dia, esses anos pesam mais do que qualquer trabalho no campo.
Eu não sabia o que responder, então apenas assenti em silêncio.
- Vejo que está se saindo bem com os documentos - continuou ele, olhando de relance para a mesa que eu havia organizado. - É bom saber que sua mente é tão afiada quanto parece. Não é comum alguém como você ter tanto... potencial.
Fiquei quieto, tentando entender o que ele queria dizer. Aquilo ainda me soava estranho - o jeito como ele falava de mim, como se eu fosse uma exceção entre os outros trabalhadores.
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VENDIDO AO ALFA [CONCLUÍDO]
FanfictionEm um Brasil escravocrata, onde a liberdade é um sonho distante, Luiz Fernando, um jovem órfão e marcado pela brutalidade da vida, descobre que seu destino foi selado sem sua permissão. Vendido como propriedade, ele agora pertence a Leonardo de Andr...