A cozinha estava silenciosa, exceto pelo som suave do óleo quente estalando nas panelas. Sara se movia com a familiaridade de quem sempre fez aquele trabalho, mas hoje o ritmo parecia descompassado. As mãos, embora habituadas ao movimento, pareciam mais pesadas. Ela mexia as panelas de forma automática, os olhos fixos no alho dourando, mas a mente estava distante, perdida nos acontecimentos do dia.
A discussão com Wilbert ainda ecoava em sua cabeça. As palavras dele, carregadas de preocupação e frustração, giravam incessantemente em sua mente. O silêncio que se seguiu à briga parecia mais opressor do que qualquer grito. Ela não sabia se estava aliviada por finalmente ter tomado a decisão de seguir em frente ou se estava se afundando em um abismo do qual não sabia como sair.
Ela olhou para a TV, sem realmente prestar atenção. O som baixo da notícia preenchia o espaço, enquanto ela tentava se concentrar no jantar. Mas as palavras começaram a se misturar, como se a tela distorcesse a realidade. Até que uma frase, quase imperceptível, capturou sua atenção. Sua mão parou no ar, e a colher de pau caiu, esquecida, na bancada.
“Dois mortos em um batizado na zona norte da cidade. Entre eles, um dos criminosos. O policial federal Vitor Morelo, que estava no local, foi baleado e encontra-se em estado grave no hospital.”
Sara engoliu em seco. O som da colher caindo na bancada ressoou mais alto do que ela imaginava. Ela virou o rosto em direção à TV, o corpo imediatamente tenso, os olhos fixos no repórter que falava apressado sobre a tragédia. Seus pensamentos, antes dispersos, começaram a se alinhar de maneira inquietante.
O nome de Morelo não a deixava em paz. Ele estava com seu pai. Estava ali, ao lado de Evandro, com aquele olhar determinado, faminto por vingança, por justiça, por destruir a vida deles. E agora, ele estava baleado. Não precisava de mais explicações. Não era coincidência.
O nó em seu estômago se apertou com a ideia que surgiu em sua mente. Evandro tinha mandado fazer aquilo. Aquelas mortes, aquele caos... tudo estava conectado com o trabalho que Wilbert fez mais cedo. O que ele disse sobre "resolver as coisas" estava mais claro do que nunca. Ela sentiu um calafrio percorrer sua espinha, a sensação de estar em um jogo onde as peças se moviam sem que ela pudesse fazer algo para impedir.
Ela parou, o olhar fixo na tela da TV, o coração acelerado, sem saber onde isso a levaria. Essa era a parte ruim das consequências: mesmo nas mil maravilhas que Wilbert lhe oferecia, ele ainda estava envolvido com o tráfico. Essa era a história dele, a parte de sua vida que ela aceitara ao aceitar seu pedido de namoro. Eles se aceitaram, tanto nas coisas boas quanto nas ruins. Nos defeitos, nas qualidades.
Wilbert estava envolvido com o tráfico, com o crime, E ela o aceitou assim, com todas as sombras que ele carregava. Sara sabia que estava escolhendo não apenas os momentos doces, mas também os amargos e os difíceis.
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Algum tempo depois, Wilbert chegou em casa, com o olhar cabisbaixo e os ombros tensos. Ele fechou a porta silenciosamente e seguiu até a cozinha, onde Sara estava concentrada terminando de preparar o jantar. Ao se aproximar dela, juntou as mãos e as entrelaçou, como se buscasse coragem para o que estava prestes a dizer.
Sara o encarou surpresa. Desde a discussão mais cedo, nenhum dos dois havia trocado uma palavra sequer, ambos ainda magoados e presos no orgulho.
— A gente precisa conversar, sabe disso. — Wilbert quebrou o silêncio, sua voz carregada de um tom que misturava tristeza e preocupação.
Sara desviou o olhar, focando nos legumes que picava com precisão quase automática.
— Estou terminando o jantar — respondeu, sua voz relutante, mas não dura.
Wilbert insistiu, apertando levemente as mãos dela.
— Eu termino depois. Isso não pode esperar. Por favor, Sara.
Ela suspirou profundamente, relutante. Não gostava de brigar com ele, mesmo que ambos tivessem razões legítimas para estarem irritados. No fundo, sentia falta do equilíbrio que sempre encontravam juntos. Enxugando as mãos em um pano de prato, ela concordou com um aceno.
— Tá bom, vamos conversar.
Os dois caminharam até a sala e se sentaram lado a lado no sofá, mas havia um espaço desconfortável entre eles. Wilbert, percebendo que precisava tomar a iniciativa, virou-se ligeiramente para encará-la.
— Desculpa pelo que aconteceu hoje cedo — começou ele, com a voz baixa. — Eu só… eu fiquei preocupado, Sara. Seu pai já te prendeu em casa antes. Eu nem consigo imaginar o que ele faria se te pegasse de novo.
Sara franziu a testa, sentindo a dor e o medo genuíno por trás das palavras de Wilbert, mas ainda assim não conseguiu evitar a defensiva em seu tom.
— Ele não vai me pegar de novo — afirmou com convicção. — Eu fui cuidadosa, ninguém me viu. Estou bem, Wilbert.
Ele passou a mão pelos cabelos, frustrado.
— Mas não é só sobre você estar bem agora. É sobre o risco que você correu. Cada vez que você desafia seu pai, você coloca tudo em jogo. E eu… — Ele parou, respirando fundo antes de continuar. — Eu não suportaria perder você.
O olhar de Sara suavizou, mas ela não cedeu completamente. — Eu sei que você se preocupa comigo, Wil, mas eu não posso viver com medo dele para sempre. Se eu não fizer algo, ele vai continuar controlando minha vida.
— Mas e se ele machucar você? — Wilbert retrucou, sua voz ficando mais rouca com a emoção. — Sara, eu te amo, e isso me mata. Ver você se arriscando, se expondo… Eu só quero te proteger.
Sara hesitou por um momento, as palavras dele derretendo parte da teimosia que ela carregava. Mesmo assim, ela sabia que não poderia viver como uma prisioneira, e muito menos deixar que o medo ditasse suas escolhas.
— E eu te amo, Wilbert — respondeu ela, sua voz agora mais calma. — Mas você precisa confiar em mim. Eu sei o que estou fazendo. Não sou mais aquela garota assustada que só obedecia. Eu cresci.
Wilbert assentiu lentamente, embora a preocupação ainda estivesse evidente em seus olhos.
— Tudo bem. Mas, por favor, promete que vai ser cuidadosa. Que, se algo der errado, você vai me chamar. Eu só quero te ajudar.
Sara tocou a mão dele, um pequeno gesto que carregava mais do que qualquer palavra.
— Eu prometo.
Ao ouvir isso, Wilbert deixou escapar um sorriso aliviado. Seus olhos brilharam, e naquele instante, todo o peso entre eles parecia se dissipar. Ele se aproximou, sua mão alcançando o rosto dela, acariciando-o suavemente.
— Obrigado — sussurrou, antes de inclinar-se.
Os lábios de Wilbert encontraram os dela com intensidade, como se todo o medo, a raiva e o amor acumulados naquela discussão tivessem encontrado um escape. Sara correspondeu com a mesma paixão, agarrando-o pela camisa enquanto ele a puxava para mais perto.
O beijo era urgente, carregado de sentimentos que palavras nunca seriam capazes de expressar. As mãos de Wilbert seguraram sua cintura, enquanto Sara sentia seu coração acelerar. Por alguns minutos, o mundo desapareceu, e só restavam os dois naquele momento.
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Impuros - Nossa Liberdade.
FanfictionSara Ribeiro, filha de um poderoso político, se vê atraída pelo perigoso mundo do Dendê, onde conhece Wilbert, um líder misterioso e irresistível. Em meio a segredos familiares e um romance proibido, Sara precisa decidir até onde está disposta a ir...