Nova Realidade.

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Os dias no Dendê tinham um ritmo próprio, tão diferente de tudo que Sara conhecia, que ela frequentemente se pegava questionando se ainda fazia parte da mesma vida. Era como estar em um universo paralelo, distante das paredes frias e luxuosas da casa onde crescera.



Sentada na varanda da pequena casa, ela segurava um copo de água gelada, sentindo o calor do sol misturado com a brisa morna que passava pelas vielas. Observava o movimento ao redor: crianças correndo descalças, rindo e gritando em brincadeiras que pareciam improváveis naquele ambiente tão áspero; mulheres conversando de porta em porta, trocando histórias e risadas; e homens carregando armas pelos cantos.



Era um caos organizado, onde cada pessoa parecia entender o papel que desempenhava naquele cenário frenético, uma rotina difícil, mas carregada de uma energia vibrante que Sara nunca tinha experimentado antes. 




O celular ao seu lado vibrou novamente, quebrando o pequeno momento de contemplação. Sem olhar para a tela, ela já sabia quem era. Mais de 30 chamadas perdidas de seu pai e várias outras de Pedro piscavam no visor como um lembrete insistente do mundo que ela havia deixado para trás. 



Wilbert apareceu na porta da casa, encostando-se no batente com um pano de prato pendurado no ombro, os braços cruzados. 



— Ele tá desesperado. — comentou, com um tom casual, mas atento ao que aquilo significava. 


Sara apertou os lábios, desviando o olhar para o horizonte. 



— Eu não vou atender. — respondeu com firmeza, o rosto assumindo um ar determinado. — Isso só vai piorar as coisas pra gente. 


Wilbert observou-a por alguns segundos, como se tentasse medir o quanto aquilo estava pesando sobre ela. Então, voltou para dentro da casa, dando-lhe o espaço que parecia precisar. 


Sara soltou um suspiro longo, deixando o copo de lado e levantando-se. Os dias no Dendê estavam longe de serem fáceis, mas tinham trazido algo que ela não sentia há muito tempo: liberdade. Mesmo com o peso de tantas decisões por tomar, ela sabia que estava finalmente vivendo por si mesma. 


Ao entrar na casa, foi recebida pelo aroma inconfundível que vinha da cozinha. Wilbert estava lá, cantarolando baixinho enquanto mexia algo em uma panela. Ele parecia completamente à vontade, como se cozinhar fosse parte de uma rotina que fazia questão de manter mesmo em meio ao caos. 


— Nossa, que cheirinho bom. — comentou Sara, aproximando-se e espiando por cima de seu ombro. — O que você tá preparando pra gente? 


Ele se virou para olhá-la, um sorriso descontraído nos lábios. 


— Hoje, eu tô fazendo o seu prato favorito. — respondeu, com um tom brincalhão e orgulhoso. — Strogonoff de frango. 


— Eu adoro Strogonoff.



— Eu sei, princesa.  — ele disse, piscando para ela enquanto voltava a mexer a panela. — Agora posso te mostrar mais dos meus dotes culinários.


Ela riu suavemente, apoiando-se no balcão e observando-o com curiosidade. 



— Você é um bobo, sabia.


— Não. Só sou um cara que gosta de ver a mulher dele sorrir. — Wilbert respondeu, lançando-lhe um olhar rápido antes de voltar à sua tarefa. 


Sara sentiu o peito aquecer com aquelas palavras simples, mas carregadas de significado. A tensão dos últimos dias não havia desaparecido, mas ali, naquele momento, ela se permitiu um pequeno alívio. 


Ela se virou para o lado, vendo a pequena mesa já posta, organizados com cuidado. O contraste entre o mundo que ela tinha deixado e aquele que estava construindo era gritante, mas não menos acolhedor. 


— Eu não sei o que seria de mim sem você, Wilbert. — disse ela, sua voz baixa, quase um sussurro. 


Ele parou por um momento, olhou para ela e deu de ombros. 



— Você ia encontrar um jeito de sobreviver. Mas, felizmente, não precisa fazer isso sozinha. 



E naquele instante, Sara soube que, independentemente do que viria pela frente, ela tinha encontrado um pedaço de lar, mesmo que em meio ao caos do Dendê.







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Depois de almoçar, Wilbert precisou sair para trabalhar. Ele comentou algo sobre pegar o lixo, mas Sara não conseguiu entender muito bem, como sempre fazia com suas palavras apressadas. Ela apenas acenou com a cabeça enquanto ele ia embora, e ficou por ali, imersa em um silêncio desconfortável que parecia preencher cada canto da casa.



Sem ter o que fazer, se acomodou no sofá, deitando-se com os braços atrás da cabeça, tentando relaxar. O programa de comédia na TV fazia o ambiente parecer mais leve, e por alguns minutos, ela se distraiu com as piadas bobas, esquecendo do peso das últimas semanas. A risada fácil dos apresentadores era como uma máscara que ela usava para esconder a tensão que ainda habitava seu peito.


Quando o programa terminou, Sara pegou o controle remoto com preguiça e começou a trocar de canais. Passou por alguns filmes, um reality show que a fez revirar os olhos, e, por fim, parou no jornal. As notícias locais não a interessavam muito, mas algo na tela chamou sua atenção. Uma foto familiar apareceu, grande e em alta definição, ocupando a tela inteira.




Sara sentou-se rapidamente, o estômago se contraindo ao ver aquele rosto. O rosto de seu pai, o governador Fontes.




" Agora faltam apenas um mês para o grande dia das eleições, e o governador que está se reelegendo novamente nessas eleições, Maurício Fontes, está com tudo para ser novamente o governador da nossa amada Ilha do Governador."




As palavras flutuavam pela sala, enquanto sua mente começava a girar. Ela não estava preparada para ver o nome dele em destaque novamente, não depois de tudo o que acontecera. A sensação de estar sendo observada se intensificou, e o peso da escolha que fizera de cortar laços com ele a atingiu mais forte do que nunca. A decisão de ignorar as chamadas dele parecia agora mais difícil de carregar.



O apresentador continuava a falar sobre os feitos do pai de Sara, sobre como ele estava consolidando sua posição, ganhando apoio popular e se preparando para mais um mandato. Sara ficou ali, parada, olhando fixamente para a tela. A raiva e a decepção se misturaram em um sentimento amargo dentro dela. Como se ele fosse um homem completamente diferente.




Não importava onde estivesse ou o quanto tentasse se afastar, a presença de seu pai continuava a assombrá-la, mesmo que ele não soubesse onde ela estava ou o que estava acontecendo com ela.



Sara desligou a TV, sentindo um nó na garganta. Foi quando sentiu o peso da situação. Não estava apenas fugindo de seu pai, mas também de tudo o que ele representava. A política, o poder, as mentiras.



A vida no Dendê lhe dava algo que ela não tinha há muito tempo: uma sensação de liberdade. Aqui, ninguém a reconhecia, ninguém a esperava. Ela poderia ser quem quisesse, longe das pressões de sua antiga vida.



Sara suspirou, fechando os olhos por um momento. Não tinha como voltar atrás agora, e o futuro parecia mais incerto do que nunca. Mas, por ora, ela sabia que precisaria de mais coragem para seguir em frente. Mas ela sabia se seu pai ganhasse o cargo de governo da ilha novamente, por mais 4 anos, sua vida seria um inferno.

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