Cap. 01 - Sonhos

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São seis horas de uma manhã ensolarada, quando o relógio de cabeceira toca, despertando Yashalom com um som melodioso.

Recebeu as primeiras impressões do dia através dos raios finos de sol que perpassavam as frestas da cortina de bambu.

Apesar de acordada, a menina ainda permanecia entre o Mundo dos Sonhos e o Mundo Físico, vendo imagens etéreas passando embaçadas diante de seus olhos, até desvanecerem no ar.

Mesmo zonza, se levanta e espreguiça, fazendo algumas articulações estalarem com esse gesto.

Sua silhueta é contornada pelos filetes de sol que invadem o quarto, na querença de romper com a penumbra, insistindo que a noite já havia passado.

Mecanicamente, toma o caminho para o banheiro.

Só acordaria, de fato, após o banho de ducha forte.

Enquanto se enxuga diante do espelho sobre a pia, embaçado pelo vapor do chuveiro, Yashalom foca em seus próprios olhos refletidos, de vários matizes azuis, com seu rosto parcialmente encoberto pela toalha branca.

Como se mergulhasse em um transe, ela toca sua própria imagem refletida: dedos com dedos, olhos dentro dos olhos.

Por alguns instantes, a imagem do espelho ondula como fosse a água de um lago, e se modifica.

Diante do espelho está uma criança de quatro anos, admirando-se.

Às suas costas surge uma mulher esguia, de longos cabelos negros, que a trata com doçura.

Feliz ao ver a mulher através do espelho e ouvir sua voz mansa, a criança sorri e corre para os braços vigorosos, que a erguem ao colo, deixando revelar algo que poderia ser interpretado como uma deformidade: um par de pequenas asas de luzentes penas negras.

A visão desta anomalia faz Yashalom despertar de seu devaneio com um impacto, com a sensação de ter caído do alto de um muro.

Tal sensação já lhe era uma velha conhecida, uma pequena reminiscência do desdobramento astral que ela sequer sabia existir, e menos ainda de que ela era naturalmente capaz de se projetar.

Acabou por ignorar a visão e o baque subsequente, esquecendo do sonho e se alardeando com algo muito mais urgente.

- Aah! Mas que droga! A hora!

Yashalom saiu correndo do banheiro, largando o roupão e a toalha de qualquer jeito sobre a cama.

Em apenas alguns minutos, veste o uniforme escolar, resmungando enquanto olhava para o relógio sobre o criado-mudo.

- Droga-droga-droga! Não acredito que se passou meia hora! Isso é impossível! Não fiquei nem dez minutos no banheiro, tenho certeza!

Do quarto, ainda terminando de enxugar e pentear às pressas os longos cabelos negros, Yashalom vai à cozinha procurar algo para comer que já estivesse pronto, pois não havia mais tempo sequer para preparar uma xícara de café ou tostar os pães.

- De novo atrasada! Assim nunca tomarei um café da manhã decente!

Com o uniforme descompassado, a mochila jogada e quase caindo do ombro e dois cream-crackers presos à boca, Yashalom desce apressada a escadaria da casa, quase aos tropeços.

E é aos tropeços que chega ao ponto de ônibus, que fica a menos de cem metros da sua residência.

A rua estreita, de pouco movimento, ladeada por casas coloniais e muito verde dos pequenos jardins, canteiros e árvores, denunciava o ar bucólico do bairro sulista de sugestivo nome Bosque.

Hybrida - Asas NegrasOnde histórias criam vida. Descubra agora