Capítulo IX

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Ana Lucia acordou com uma ressaca das brabas, tinha feito janta na noite anterior e sobrado muita comida: aquela mania de fazer comida prum batalhão que só ela tinha. Foi de pijama as 11:30 da manhã levar uma cambuca de comida pro seu vizinho, que estava na varanda corrigindo provas e trabalhos. Ela chamou de longe e o mesmo falou que o portão estava aberto, ela entrou devagarinho, estava levando um bocado de comida.

– Oi vizinho. Desculpa incomodar. Fiz comida ontem a noite e sobrou muuuuito. Queres? – Ela disse colocando em cima da mesa e sentando na cadeira. Foi folgada e nem percebeu. – Me desculpa, já cheguei sentando. Tá fazendo o que?

– Oi Ana, corrigindo trabalhos de alunos. Tenho que parar de ceder sempre prazo, daí acontece isso e acaba com meu fim de semana! Essa comidinha é bem vinda viu. Quer almoçar aqui em casa? – Marcelo agora sorrira de orelha a orelha. Estava com fome. –

– Olha almoçar eu não quero, to com dor de cabeça. Aceito um café.

– Pode deixar que eu passo um. Entra que vou esquentar a comida. – Agora estavam dentro da cozinha e Ana viu Marcelo levantar o braço pra pegar a chaleira e pode ver seus músculos ressaltados na blusa. Deu um suspiro bom. – Tudo bem, Ana? – Ele perceberá e achava graça, fingindo de desentendido fez com que ela corasse. –

– Ah, tudo sim! – Ela desconversou. – Na verdade, queria te oferecer minha ajuda se eu puder. É professor de quê?

– História, termino meu mestrado mês que vem, estou quase terminando o TCC. – Ele deu um suspiro enorme. – Eu pretendia fazer doutorado em seguida, mas a separação desestabilizou minha situação financeira. Quem sabe um dia!

– Você é dedicado mesmo, hein! Tive a oportunidade de fazer o mestrado, mas a reitoria não aguentava mais minhas mudanças de faculdades. Imagina mais dois anos? Eles não suportariam. – Ela deu uma risada boba, lembrando que teve que enfeitiçar tudo e todos para não ser expulsa das faculdades, afinal tantas transferências eram proibidas. –

– Eu nem sabia que era formada. Que curso?

– Ciências Sociais. – Ele a fitou surpreso – Por isso que te ofereço minha ajuda. Não sei qual é o tema do trabalho, mas um par de olhos a mais naquela pilha de folhas seria interessante.

– Nossa Ana! Que incrível! Quase escolhi esse curso, mas minha mãe foi historiadora, então achei certo seguir o caminho dela. E quero sim, poxa, estou impressionado!

– Você realmente me subestima né?! – Ela riu, fazendo-o ficar envergonhado. –

– Você é uma caixinha de surpresas. – E assim passaram toda à tarde de sábado, até escurecer, o tema do trabalho era Inconfidência Mineira, matéria que Ana sabia de cabo a rabo. Eles terminaram exaustos e rindo do último trabalho, que tinha sido cópia exata de outro, o que resultou num zero para ambos. Ana ficou com dó das pessoas que ela nem conhecia, mas não tinha o que fazer. – Ana, se formou em bacharelado ou licenciatura?

– Licenciatura. – Ela disse despreocupada, enquanto organizava as pilhas por turma e em ordem alfabética. – Por quê?

– Curiosidade mesmo. Por que nunca exerceu?

– E quem disse que eu não exerci? Trabalhei uns meses na Nigéria, mas os conflitos e a guerra civil me fizeram voltar. Estupro é crime de guerra pelo ONU, mas na prática a teoria é outra. Todas as professoras mulheres tiveram que se refugiar e quem pode saiu do país.

– Nossa, que pesado.

– Sim, infelizmente em todas as partes do mundo é crime ser mulher. Desde a roupa em que ela vista até o direito da laqueadura, por exemplo. Amar outra mulher então, nem se fala.

– Tenho muito medo pela Mariana, quero educá-la para ser independente e corajosa, mas tenho tanto medo. – Ele agora olhava para a xícara de café vazia. – Mas você não tinha medo de ficar na Nigéria naquele tempo?

– Claro que eu tinha! – Ela sorriu – Mas sou muito teimosa e não vou desistir de ensinar crianças porque tem homens querendo mostrar sua masculinidade frágil disfarçada de superioridade masculina. Fui embora porque fui expulsa. Senão teria ficado.

– Você é uma mulher forte, sabia disso?

– Não sou não Celo, só estou exercendo meu direito como cidadão que é o livre arbítrio, que não deveria ser taxado de força feminina, quando deveria ser algo normal e cotidiano.

– Tens toda razão. – Ele deu uma espreguiçada enquanto olhava para o céu. – Hoje vai ser uma noite bem fresquinha.

– Uhum! Vizinho, quer ir pra balada comigo?

– Balada Ana? Não vou numa há anos.

– Pois então venha matar a saudade! To mó afim de sair. Conheces alguma interessante?

– Acho melhor não Ana, nem sei se tenho mais idade pra sair pra balada.

– Ora deixe disso! Você é um brotinho, agora venha!

Ana ficou feliz por ter aprendido português com uma de suas alunas nigerianas, aprendeu um pouquinho de crioulo também. Depois da carinha insistente de pidão dela, ele aceitou. Cada um foi para seu canto se arrumar. Ela estava tão animada! Não se sentia segura em ir pra balada sozinha e seu vizinho é uma ótima companhia! Literalmente uniu o útil ao agradável. Por volta das onze ambos estavam prontos e Marcelo estava excepcionalmente cheiroso com seu perfume. Foram de carro até uma balada no centro, onde Ana teve que mostrar sua identidade para umas três pessoas, que não acreditavam que a menina tinha 22 anos, ela não sabia se achava graça ou ficava triste pelo impasse. É claro que ele se deliciou vendo as cenas de frustração da garota tentando provar que era maior de idade.

Ao entrarem, riram, dançaram, tomaram cerveja e principalmente: se divertiram. Fazia tempo que Marcelo não saia assim e ria tanto, tinha esquecido como era a sensação de ser um jovem sem a parte de ser pai 100% do tempo. Chegaram em casa por volta das cinco da manhã e ao deixar a jovem na porta da sua casa, Marcelo riu ao lembrar-se de uma cena na noite.

– Foda Ana, tu viu que cara chato? Só foi embora depois de eu falar que tava contigo.

– Homem só respeita homem. A gente sabe que é assim que funciona. – Ela suspirou. –

– Pois sim, mas que ele merecia uns sopapos, ele merecia.

– Sim! Nossa! Deu vontade de socar os cornos dele. – Os dois riram. – Bem, eu vou entrar que logo amanhece. Passamos o dia inteirinho juntos né? Tu é uma boa companhia Marcelo. Boa noitinha e bom descanso! – Ela beijou o canto da boca dele, mesmo que sem querer, causou arrepios nos dois – Tchau! – Depois de uns três sorrisos, Marcelo voltou pra casa, a noite de ambos tinha sido divertida e proveitosa, algo que eles não sentiam há tempos.

A FeiticeiraOnde histórias criam vida. Descubra agora