Gael
Focado em realizar a entrega o mais rápido possível, desci pelo Morro do Alecrim com tudo. Não estava acima da velocidade permitida, mas fora dos meus padrões. Próximo à Catedral, olhei para o medidor de combustível e percebi que a gasolina estava acabando. Como consequência, fui obrigado a parar no posto mais próximo, a alguns minutos dali.Assim que cheguei ao estabelecimento, um frentista barbudo veio até mim.
— É pra colocar quanto, meu chefe? — disse ele, pondo uma flanela laranja sobre o ombro.
— Pode encher o tanque.
Enquanto o veículo era abastecido, ouvi gritos eufóricos. Seguindo-os, virei o rosto para o outro lado da rua e vi dois homens discutindo. Um deles estava descalço; o outro, vestia uma camisa rasgada e usava um boné azul. Ao que parecia, o motivo da briga era por causa de um "suposto calote".
— Tu vai me pagar, satanás! — gritou um deles, batendo contra o próprio peito. — Pode apostar que vai!
— Tu tá ficando louco, mermão? — retrucou o outro, com a voz mais baixa. Parecia estar rouco. — Tu nunca me emprestou nem um centavo.
— Ora, louco?! Tu vai ver, infeliz. Amanhã, eu vou lá na porta da tua casa buscar meu dinheiro na mão da tua mulher.
— Como é que é? Repete aí se tu for cabra macho! Quero ver se tu é!
Antes que eles partissem para a agressão física, um mototáxi se aproximou e conversou com o mais agitado, afastando-o dali.
— Aqueles dois vão acabar se matando, sabia? — comentou o frentista. — Todos os dias é a mesma coisa. Eles bebem juntos, e no final ficam de gritaria pela rua.
— Sério...?
— É, sim! A gente aqui já se acostumou com a situação. Hoje em dia, quase ninguém nem liga mais. Sabemos que não vai dar em nada, que amanhã vão fazer a mesma coisa.
— Entendo, eu acho! Tive uns vizinhos que eram assim. Eles sempre se estranhavam, mas não se desgrudavam por nada.
— E ainda são desse jeito? — questionou-me, demonstrando curiosidade.
— Então... soube que eles morreram enquanto estivesse fora.
Devido ao silêncio dele, verifiquei os números no sensor da bomba de combustível, abri a carteira e paguei o valor que devia. Retirando-me do posto, retornei ao meu objetivo de concretizar a entrega. No entanto, tive uma surpresa ao chegar no suposto endereço que me repassaram.
— Mãe... a senhora pediu pizza? — olhando para trás, gritou o adolescente que me atendeu.
— Eu o quê? — respondeu ela, na medida em que se aproximou. — Não! Eu não pedi nada...
Ela era uma mulher alta, com cabelos curtos e tingidos de castanho. Seus óculos redondos estavam pendurados sobre a gola da blusa.
— Desculpe, mas o endereço que me repassaram foi o daqui.
— Pois se foi, deve ter sido algum trote — continuou ela, encostando-se sobre o umbral do portão —, porque aqui só mora eu e o meu filho. E tenho certeza que ele não pediria nada sem a minha permissão — olhou para o adolescente com um ar repreensivo. — Não é mesmo, Roberto?!
— Eu juro que não liguei pra lugar nenhum!
— Viu só? — pôs o braço sobre o ombro dele. — Nenhum de nós pediu nada.
Estava quase convencido de que aquilo havia sido uma brincadeira de mal gosto, não necessariamente da parte deles, mas de qualquer outra pessoa que não tinha nada melhor para fazer. No entanto, quando fui conferir o endereço novamente, a mulher estendeu a mão na minha direção, dizendo:
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Entre Bodes e Flores
RomanceNa adolescência, Gael foi diagnosticado com Síndrome de Tourette. Ainda jovem, perdeu a esposa. Então, isolou-se do mundo. Depois de anos afastado da cidade, decidiu recomeçar a vida ao adotar Godofredo, um inusitado animal doméstico. Dona de uma fl...