Gael
Sabe quando nos deparamos com uma cena e pensamos: ei, eu já vi isso acontecer. Foi essa a sensação que tive ao me deparar com o Leonardo quase inconsciente.
No meu caso, o fato ocorreu numa época de rebeldia. Durante a adolescência, é óbvio. Lembro-me do meu pai indo me buscar na praça Gonçalves Dias por volta das dez da noite. Acho que alguém deve ter avisado a ele sobre as minhas inúmeras tentativas de me equilibrar sobre a estátua do poeta que denominava o local em questão.
Quando meu pai chegou, eu estava deitado no banco da praça "morto de bêbado" e "rindo com o vento". Para piorar, os "amigos" com quem dividia a garrafa de vinho "deram no pé" quando notaram a presença dele pelos arredores. Então, o que me restou para o dia seguinte foi um sermão e a sensação de abandono, e isso me estimulou a repensar sobre o rumo que a minha vida seguia. Como consequência, aos poucos, desfiz alguns laços de "amizade", e digamos que voltei a "andar nos trilhos" como o meu velho costumava dizer.
Naquele fim de tarde, Estela e eu levamos o Leonardo para a casa dela. Ele estava tão bêbado que nem caminhava direito. Por isso, eu tive de carregá-lo no colo durante um pequeno trecho até o carro. Ao chegarmos à casa dela, nós o acomodamos na cama dele.
De repente, Leonardo mudou de posição. Virou-se de barriga para cima.
— Léo, cara, não! Tu não pode deitar assim, não! — advertindo-lhe, virei-o de lado.
Curiosa, Estela me questionou sobre o que fiz. Então, expliquei-lhe:
— Se ele ficar de barriga pra cima, corre o risco de vomitar de novo e se sufocar por causa disso.
— Ai, credo! Deus me livre, então é melhor deixarmos ele de lado, mesmo.
Apreensiva, nos minutos seguintes, Estela compartilhou comigo teorias sobre a motivação do Leonardo para ter feito o que fez. Em todas elas, ela se culpava pelo ocorrido. Não sabia como era a convivência dos dois. Então, supus que talvez ele quisesse chamar a atenção dela sem saber como.
Não sei se me expressei mal ou se o nervosismo dela a fez enxergar um inimigo em mim. O fato é que ela me confrontou perguntando-me se eu apoiava a atitude do Leonardo em relação à bebida. Devido a isso, defendi-me ao afirmar que não. E para enfatizar o que falei, contei-lhe sobre o episódio da praça Gonçalves Dias, quando eu tinha a mesma idade do irmão dela. Por motivos óbvios, não entrei em detalhes, até porque não tenho motivos para me vangloriar pelo ocorrido — não é algo que contarei aos meus filhos.
Como não tínhamos voltado para a floricultura, notei que ela precisaria se deslocar até o trabalho para pegar o veículo. Por isso, pedi a chave de sua moto para que eu pudesse buscá-la. Achei que tivéssemos confiança mútua o suficiente para fazer esse tipo de favor. Se ela cogitou me negar a entrega, não demonstrou. Assim que recebi o objeto das mãos dela, Estela quis me dar dinheiro para eu ir de mototáxi. Contudo, logo me retirei, deixando-a de mão estendida.
Parei um mototáxi na esquina da rua dela e segui rumo à floricultura. Quando cheguei lá, encontrei a Isabel parada na frente do local. Assim que pus os pés na calçada, ela me disse:
— Ué, cadê a Estela? Eu já ia ligar pra ela pra perguntar se não viria buscar a moto.
— É... — liguei a moto. — Aconteceu um imprevisto, daí não tivemos condição de voltar por aqui.
Naquele momento, subi no veículo. Então, em questão de segundos, Isabel se deslocou para a frente dele, impedindo-me de sair.
— Pera, Gael — disse ela, pondo as mãos contra os retrovisores. — Aconteceu alguma coisa com a minha amiga? Ela tá bem, não tá?
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Entre Bodes e Flores
RomanceNa adolescência, Gael foi diagnosticado com Síndrome de Tourette. Ainda jovem, perdeu a esposa. Então, isolou-se do mundo. Depois de anos afastado da cidade, decidiu recomeçar a vida ao adotar Godofredo, um inusitado animal doméstico. Dona de uma fl...