Capítulo 26

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Gael

Cresci ouvindo os outros dizerem que "alegria de pobre dura pouco". Então, sempre me perguntei sobre a exatidão desse "pouco". Para mim, era importante entender se o ditado popular falava de um hora, um dia ou um mês. Assim, teria tempo de me preparar para o possível tombo. Eu poderia até sofrer por antecipação, é claro, mas dificilmente morreria por consequência da queda.

No dia marcado para o recebimento do carro, Daniel me levou até à sede do bingo. Eu estava animado, mas não tanto quanto ele, que a todo instante me lembrava de sorrir.

— Dá pra melhorar essa cara de bundão? Cara, estamos indo buscar o teu carro. Te anima aí, vai.

— Oxe, eu tô animado, siô! Agora... em relação à minha cara, acho que não tem plástica no mundo que faça esse milagre.

Devo dizer que, em questão de meia hora, a empolgação do Daniel desapareceu. E isso ficou evidente quando ficamos frente a frente àquele carro de 1980.

— Ué — disse ele —, jurei que o fusca fosse branco, porque era essa a cor que tava na imagem da cartela, não era?

— Já ouviu falar de "imagens meramente ilustrativas"? Foi um sorteio destinado para as mães...

— É, faz sentido! Ah, mas quer saber? Não se preocupa, não, meu amigo. Rapidinho a gente dá um jeito nisso — pôs a mão no meu ombro. — Não deve sair tão caro pra mudar a tintura dele.

— Tá de brincadeira, né?

— Oxe, eu mesmo, não! Por quê? Por acaso tá pensando em dar ele de presente pra tua mãe?

— Se tu conhecesse bem a minha mãe, saberia que ela só entraria nesse carro se fosse pra me atropelar.

— Vixe, pior que tu tem razão! Tinha até me esquecido do quanto a Dona Selma valoriza o que é atual. Mas diz aí, se tu não vai dar o carro pra ela, então por que não pretende mudar a cor dele?

— Porque não vejo necessidade, é apenas uma cor qualquer. Pra que fazer tanto caso?

— Uma cor qualquer, não, Gael. Na boa, tu sabe muito bem que esse violeta é bastante chamativo.

— Pode até ser chamativo, mas não vejo como isso pode interferir na minha vida.

Naquele momento, ele abaixou a voz:

— Tu sabe que as pessoas comentam, né?

— E é por isso que tenho um bom motivo pra permanecer com ele do jeitinho que tá. Se eu fosse dar ouvidos pro que dizem de mim, já teria batido as botas há muito tempo.

— É... pensando por esse lado, acho que tu tem razão. Eu tô sendo bem idiota!

Sempre desejei ter um carro diferente, mas não me refiro ao quesito extravagância. Queria um transporte que, de alguma forma, combinasse com a minha personalidade. E foi isso o que encontrei naquele fusca. Tanto ele quanto eu costumávamos atrair olhares.

Após algumas semanas, enquanto trafegava pelas ruas movimentadas do centro, resolvi encostar na biblioteca municipal; pois, como eu tinha destruído a lista de NCR, acreditava estar apto para frequentar a biblioteca pública da cidade.

Minha experiência com bibliotecas não era das melhores. Nas escolas por onde andei, aprendi a enxergá-las como áreas restritas. Contudo, vez ou outra precisava de um livro para concluir as atividades. Em vista disso, deslocava-me para lá com receio de que alguém reclamasse de mim.

Para evitar tal desconforto, mesmo com mesas especificas para a leitura, eu não permanecia na biblioteca por mais de cinco minutos. Dava o fora assim que recebia o material; porque era um local de silêncio, então não me sentia bem-vindo.

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