Capítulo 38

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Gael

Ninguém quer passar a vida inteira provando do pão amassado pelo diabo. Por isso, quando algo ruim acontece conosco, recusamo-nos a acreditar que situações semelhantes ou piores possam vir à tona.

Não costumamos abraçar o sofrimento. Então, na maioria das vezes, ele finge ir embora para poder nos agarrar durante um breve momento de distração. Num segundo, você cata pedras para atirar no fundo de um lago; no outro, assusta-se com o sangue presente em uma de suas mãos, pois descobre que o que está segurando são cacos de vidro.

Ao chegar à casa dos meus pais, cumpri com minha promessa. Enviei um SMS para o Daniel e depois liguei para a Estela. Sentia-me exausto devido às longas horas de viagem. Mesmo assim, durante aquele resto de noite, jantei ao lado dos meus familiares, que, ao redor da mesa de madeira, não paravam de falar um só segundo.

— Gael? — disse meu pai. — Sabia que eu e a tua mãe pretendíamos te visitar durante as minhas férias de dezembro?

— Sério? Não, eu não sabia... Mas se quiserem ainda podem ir, já que não devo ficar aqui por mais de uma semana.

Naquele momento, minha mãe olhou para o meu pai como se o repreendesse. Em seguida, disse:

— Vamos com calma, a gente ainda tá conversando sobre isso. Não é mesmo, querido? Por enquanto, ainda não tem nada decidido.

Creio que minha mãe não faça por maldade, mas se tem uma coisa que ela tira de letra é converter situações confortáveis em desconfortáveis. Basta um gesto ou um comentário dela para deixar o clima pesado.

Quebrando o silêncio momentâneo, Guilherme falou:

— Mano, os teus tiques diminuíram bastante. Né mesmo, pai?

— Verdade! Bem observado, Guilherme. Tá tomando alguma medicação nova?

— Sim! Já tem alguns meses, e ela tem me ajudado bastante. Ganhei até uns quilinhos, só que isso não é nada comparado à época daquelas crises que vocês cansaram de presenciar.

— Tu tá mesmo mais fortinho, mesmo — comentou minha mãe —, mas deve se lembrar que não pode culpar os efeitos da medicação por tudo.

Dito isso, ela olhou para mim e passou o dedo sobre o canto da própria boca, sinalizando que o meu estava sujo.

Antes que o clima ficasse estranho outra vez, Guilherme voltou a falar:

— Amanhã vou te apresentar pra minha noiva, viu? Aí tu vai ver o que é mulher bonita de verdade. Inclusive, era pra ela tá aqui hoje, mas teve um contratempo no trabalho e não pôde dar as caras.

Após o jantar, tirei um tempo para conhecer aquele lugar. Se comparada à casa em que cresci, eles moravam numa residência maior. Tinha duas salas amplas, um quintal, uma varanda e um quarto a mais do que a primeira em que moramos. Abaixo do mesmo teto, pela primeira vez eu não precisaria dividir o quarto com o Guilherme.

O meu quarto ficava próximo à despensa. Nele, as paredes eram pintadas de amarelo, e em uma delas existia alguns discos grudados. Por ali, havia um ventilador de teto que, de início, não me incomodou, mas me deixou paranoico devido ao barulho emitido. Parecia que a qualquer instante aquelas lâminas poderiam cair sobre mim.

Conforme os minutos passavam, mais tenso eu ficava. Então, em algum momento daquela noite, empurrei a cama para o canto da parede, distanciando-me do ventilador. Desligá-lo não era uma opção, já que eu estava em um local forrado, onde não existia janela.

No dia seguinte, após o café da manhã, tive a oportunidade de conhecer a noiva do Guilherme. Na varanda da casa dos meus pais, ele me apresentou a ela, que disse:

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