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Eu não consegui dormir decentemente. E como conseguiria, sendo que eu só lembro do sonho estranho que eu tive com um cara que eu acabei de conhecer. Quando o sol bate na minha janela aberta, não hesito em levantar e tomar mais um banho – espero que meus pais não sintam um grande impacto na conta de água.

O que mais me assusta é a riqueza de detalhes de um sonho – é como se eu estivesse dentro de um episódio dos Bórgias.

Quando eu saio do banho, escovo os dentes evitando olhar para o espelho. Não quero ver as muitas semelhanças que existem entre eu e a criada italiana. Eu preciso tirar essas imagens da cabeça, e a melhor forma é tentar ocupar a mente com coisas melhores para fazer.

O problema é que sem meus irmãos em casa, o fim de semana é muito parado e previsível. Talvez eu não devesse ter dispensado a companhia de Larissa tão facilmente. Nem meus livros chamam minha atenção e não há nada no Netflix que me interesse – ainda estou aguardando a segunda temporada de Stranger Things.

O cheiro que vem da cozinha é delicioso, e por um segundo o sentimento de familiaridade afasta toda a ansiedade e o medo insistentes: o café da manhã da minha mãe é simplesmente delicioso, e talvez seja por isso que eu nunca consigo emagrecer (tá bom, pode ser também porque eu não paro de comer... nunca). Eu não sei que horas são, mas provavelmente meus pais vão estranhar um pouco meus súbitos hábitos matinais, por isso preparo uma máscara de "estou relaxada, oh yeah" – eu não quero que eles me questionem demais. Eu sou uma pessoa extremamente transparente às vezes, e isso simplesmente é inconveniente quando se tem pais tão curiosos – e entro na cozinha.

─ Filha? Não está um pouco cedo para você descer? ─ meu pai está tomando uma xícara de café e lendo um jornal do dia.

Eu não disse?

─ Bom dia, pai... e eu não consegui dormir direito hoje ─ eu fico de costas para ele, evitando seu olhar, e pego uma xícara no armário. A encho de café com lentidão exagerada e sento à sua frente, trazendo as torradas para perto de mim.

─ Hmmmm... por acaso não tem nada a ver com o rapaz que te deixou em casa ontem à noite, tem? ─ meu pai esconde o rosto atrás do jornal, sabendo muito bem que eu quero jogar alguma coisa nele.

Olho feio para o jornal que cobre o rosto dele. Esse tipo de assunto é proibido na casa – por mim, obviamente – basicamente porque há 10 anos meus pais gostaram tanto de um namorado meu, que ficaram contra mim quando eu terminei o relacionamento.

E como que ele conseguiu ver o Gustavo no portão? Até onde eu me lembro, a cortina da sala estava fechada ontem à noite.

─ Vou fingir que você não perguntou nada, pai. E então, o filme de hoje vai ser mesmo "Em Algum Lugar do Passado"? ─ mordo minha torrada, olhando as notícias do jornal que estão viradas para mim, tentando refrear o que agita meu coração – a simples menção a ele já mexe comigo.

─ Sim, a sua mãe pediu, então não custa nada, né? Mas só vamos começar lá pelas três da tarde, como sempre. Então porque não sai para dar uma corrida? Sua cara está horrível ─ meu pai dá uma olhada em mim por trás do jornal e levanta as sobrancelhas para enfatizar.

Eu rio e dou mais uma mordida na torrada. Provavelmente meu pai tem razão. O sonho que eu tive me perturbou ainda mais do que tudo que aconteceu ontem com o Gustavo. Eu estou com tanto medo que não consigo nem imaginar o martírio que vai ser dormir esta noite.

─ É uma boa ideia pai, quem sabe assim o tamanho da minha bunda não diminui um pouco... ─ inevitavelmente eu me lembro dos comentários horríveis que escutei no bar ontem.

Eu sempre tive problemas em conseguir que as pessoas me respeitassem. Os homens normalmente acham meu corpo lascivo demais (mesmo que eles não saibam que essa palavra exista) e as mulheres me acham vulgar por não esconder meu corpo em roupas largas.

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