Minhas mãos estão tremendo e nem é tanto pelas queimaduras nos dedos. Sei que o que me faz derrubar a chave todas as vezes que tento encaixá-la na fechadura é essa torrente de emoções e sensações físicas que Gustavo causou em mim.
Estou ansiosa, querendo fechar logo essa porcaria de portão e poder correr para meu quarto e ver o que ele me enviou - sim, eu sei que estou sozinha em casa, mas os espíritos dos meus irmãos parecem rondar permanentemente a casa, e sinto como se eles pudessem ver exatamente o que estou fazendo (talvez eles tenham conseguido convencer meus pais a instalarem aquelas câmeras dentro de casa).
O portão não ajuda muito - meu pai nunca deixou que trocássemos por um modelo mais leve e que realmente fechasse - e eu fico presa nele por 10 minutos. O portão é o mesmo desde que nos mudamos para a casa, um trambolho gigante de madeira maciça e ferro. Mal consigo ver o lado de fora, só algumas partes dos corpos das poucas pessoas que passam na rua.
Consigo finalmente dar um tranco no portão, que se tranca com um estrondo exagerado - até mesmo chegar perto do portão faz um barulhão. Começo a correr para dentro, me atrapalhando com a mochila, a bolsa, as mãos.
Eu estou queimando de febre - e eu não sei dizer se é porque estou machucada ou por cauda do desejo irrefreável que eu sinto por ele - mas não sei se vou conseguir lavar o rosto para aliviar o inferno que se tornou meu corpo.
Coloco a mochila com o notebook da empresa no sofá e sigo para o meu quarto lentamente, tentando ao mesmo tempo acalmar meu coração e imaginar o que ele me enviou. A promessa de uma continuação da nossa conversa me deixou ansiosa.
Abro a janela do quarto, que dá para o portão de casa, deixando a brisa fria entrar com sua calmaria. O silêncio é enlouquecedor, e a tristeza que bate em mim é demais para aguentar. Eu vivo nessa casa há muitos anos, mas nunca fiquei sozinha antes. Essa casa deixou de ser um lar quando as cantorias desafinadas da minha mãe desapareceram, quando os gritos irritados de Rodrigo com seu videogame cessaram. Eu sempre fui espectadora deles, deixando que a vida deles entrasse na minha.
Eu vivi a minha vida através da deles, como se nada do que eu fizesse fosse mais importante para mim do que eles. E não são. Quem eu sou sem a minha família? Apenas uma garota de 28 anos, frustrada com o trabalho, com a vida.
E agora eu tenho a certeza de que sou dispensável. Se fosse Miguel ou Rodrigo no meu lugar, a casa ainda estaria cheia deles, cheia de vida, mesmo no momento horrível que estamos passando. Eu, por outro lado, não sinto nem vontade de comer.
Talvez seja por isso que eu me envolvi tanto com Gustavo. Que deixei me apaixonar. A mera expectativa de algo diferente já me faz deseja-la desesperadamente.
Sento na cama, sentindo a derrota enfraquecer minhas pernas. Como eu poderia prever que eu me tornaria essa pessoa. A garota patética e sem personalidade. Pego o meu celular e o jogo longe, sentindo as lágrimas descerem pelo meu rosto.
A exaustão que chega com o choro me deixa aliviada - talvez se eu dormir os pensamentos ruins possam ir embora. Procuro pelo quarto por qualquer sinal do gato, mas ele deve estar em sua casa - provavelmente sentiu a esterilidade do lugar, agora que só tem eu aqui dentro.
Me ajeito na cama de qualquer jeito, preferindo não tomar os remédios receitados para a dor. Eu só quero um sono limpo.
Adormeci instantaneamente.
***
A voz de Signora Filomena reverbera pelo castelo com autoridade e exatidão. Os mestres decidiram de última hora realizar um banquete para convidados vindos de Milão - os rumores que chegaram até a cozinha dizem que o próprio Sforza estaria entre eles. Melinda sabe que não é verdade, pois estava limpando os sapatos da grande Signora, em um dos aposentos reservados à ela, quando a ouviu comentar com sua criada pessoal que nunca daria motivação para mais rumores entre Sforza e Cecilia Gallerani, o que apenas atrapalharia seus próprios planos.
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A Chance do Tempo
ChickLit"Melinda não é feliz. Apesar de ter uma família amorosa, trabalhar com algo que parece fazer a diferença para alguém - mesmo que não para ela - e ter ótimas amigas, falta algo. Mas ela deixa de pensar nisso quando o seu mundo vira de ponta cabeça ap...