O chão duro e frio no meu rosto parece surreal, enquanto acordo para esta realidade. Estou tão cheia de imagens antigas na cabeça que demoro um pouco para voltar: a criada e o patrão prontos para se entregarem um ao outro; Gustavo morrendo nos meus braços; eu enfiando uma faca no coração.
A luz da sala está acesa, mas não consigo ver Fernando por perto. Estou caída para o lado, e minha cabeça está latejando – provavelmente do machucado que o martelo de carne fez nela. Sinto o sangue empapando meu cabelo, e graças à Nossa Senhora das Mãos Amarradas, eu não consigo tocar o ferimento, para não surtar.
Tento me levantar, mas não consigo. Estou exausta, e mais tonta do que antes – pelo menos meu corpo inconsciente teve a decência de não cair para o lado do vômito. Consigo sentir o cheiro azedo – e imagino que tenha sido isso que afastou Fernando no momento.
Eu preciso me levantar, e ir até a gaveta em que ele estava mexendo antes. Mas como vou fazer isso sem que ele me escute?
Prefiro não me arriscar a esperar pela outra possibilidade – aguardar por seu retorno, em que ele possa tentar vir continuar o que queria ter começado antes de eu colocar seu bolo para fora – então começo a arrastar meu corpo pelo chão empoeirado. Minhas pernas não estão presas dessa vez, então consigo me empurrar até o sofá. Preciso achar uma maneira de me levantar decentemente, e faço uma força sobre-humana para levantar minha cabeça até o assento do sofá. Quando finalmente consigo, eu paro e escuto para ver se ele não está vindo inspecionar o que a sua prisioneira está fazendo, mas tudo está em silêncio.
Começo a levantar o meu corpo inteiro – e amaldiçoo mil vezes todos os doces e pães que eu comi desenfreadamente por 28 anos e que me deixaram desse tamanho. Se eu fosse uma maldita donzela de filme, pesando míseros 40kg, conseguiria me levantar facilmente – mas não, eu sou uma mulher da vida real, com seu sobrepeso de felicidade (quem não fica feliz depois de comer uma feijoada?) e quase sedentária. Então não está sendo fácil. Estou quase chorando com o esforço físico, mas mentalizo uma imagem da liberdade, de como eu preciso fazer tudo o que a fofoqueira me disse para fazer, e consigo ficar em pé, a respiração asmática me deixando claro que se eu sair viva dessa, eu preciso urgentemente de uma academia.
Certo, posso deixar as promessas do "se eu sobreviver a isso" para depois que eu conseguir efetivamente, sobreviver.
Contando os passos, vou em direção à pia da cozinha americana dele, mas paro quando fico em frente ao corredor que dá acesso aos quartos. Quando eu o conheci, uma menina morava com ele – alguém da faculdade. Mas ela foi embora logo depois que começamos a namorar... o que eu achei extremamente estranho na época. Tento me lembrar o nome dela, mas não consigo. Só me lembro que eu nunca tive a chance de dizer adeus a ela – e nas únicas duas vezes que a vi, ela tinha sido tão legal comigo.
Por que estou me lembrando disso quando tenho que aproveitar a oportunidade para ir embora?
Vou até a gaveta e tento abri-la – é muito mais difícil do que vemos nos filmes, e o contorcionismo que eu faço é digno de uma aula avançada de Yoga. Na primeira tentativa eu faço muito barulho, e fico olhando para o corredor, para ver se ele não está vindo em minha direção – mas depois de alguns segundos, permaneço sozinha. Solto a minha respiração e tento mais uma vez, e quando consigo passar dois dedos pelo puxador da gaveta, dou um passo para a frente, sentindo a gaveta me acompanhar.
Certo, a parte mais fácil já foi... agora eu preciso conseguir enfiar a minha mão dentro da gaveta e pegar uma faca. Que não seja grande demais para arrancar um dedo, ou pequena demais que não tenha corte.
Fico na ponta dos pés, sem tirar os olhos do corredor, e mexo minhas mãos milimetricamente, para conseguir pegar o que eu quero sem que a gaveta feche com a minha bunda. Faço um novo contorcionismo e sinto o metal frio da faca nas minhas mãos e a agarro com a ansiedade que transborda do meu peito – e acabo enfiando a maldita nos meus dedos. Mas eu não me importo, não era a primeira vez que eu cortava as mãos com uma faca nos últimos dias – e pelo menos dessa vez eu consigo explicar para as pessoas exatamente como aconteceu.
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A Chance do Tempo
Chick-Lit"Melinda não é feliz. Apesar de ter uma família amorosa, trabalhar com algo que parece fazer a diferença para alguém - mesmo que não para ela - e ter ótimas amigas, falta algo. Mas ela deixa de pensar nisso quando o seu mundo vira de ponta cabeça ap...