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Estou segurando o papel, bem na cara dele, para ver se acredita em mim. Mas André é muito teimoso.

— André, pela última vez, eu preciso levar o atestado para a empresa. Você não entende que se eu não levar isso logo, vão começar a dar falta injustificada para mim? Vou perder dinheiro, e nós dois sabemos que não é a hora ideal. Vai ser bem rápido, eu juro. Você me deixa lá, eu entro, você fica me esperando e saio logo. É bem simples.

Argumentar com uma pessoa que fez de sua vida uma cruzada pessoal para te manter longe de todo o mal – sendo esse mal um idiota de 1,80m que pesa uma tonelada e gosta de gravar vídeos de garotinhas torturadas – é difícil. Mas eu estou tentando levar a minha vida normalmente, pensando nos outros problemas que eu tenho – e não apenas naqueles que começam com F e G.

André está personificando meu irmão direitinho, e quando Miguel voltar, vou bem ter uma conversa séria com ele de que assumir a personalidade um do outro não é normal. Nem saudável. Principalmente para irmãs mais novas.

— Melinda, você tem algum problema nessa sua cabecinha? Com toda a merda que tem acontecido, e agora que você nem quer ver mais o cara que tava te ajudando a sobreviver a ela, como pode achar que eu vou deixar você sair sozinha?

— Mas você vai estar comigo o tempo todo.

— Mas ele pode estar em qualquer lugar, pronto pra te pegar.

— Mas ele não pode entrar na empresa.

— Você não sabe disso.

— Nem você.

Estamos discutindo quando a mãe dele entra no quarto, nos trazendo uma xícara de chá, já que eu recusei o almoço. Comer não tem sido uma das minhas prioridades no momento, e ela deve ter percebido, pois a cada meia hora ela me traz alguma coisa que espera que seja gostosa o suficiente para me fazer comer.

Ela ainda não teve sucesso.

— Vocês dois não tem jeito mesmo viu. Chega de brigar. André vai te levar no trabalho, querida, ou então você pode pegar o meu carro e ir sozinha.

A Antônia – mãe dele – não sabe do que está acontecendo direito. Só que André está cuidando de mim como Miguel faria. E ela acreditou.

O que não é muito longe da verdade.

— Nem sonhando, Melinda. Você não vai sair dessa casa sozinha — ele pega a xícara dele da mão de Antônia, reclamando um pouco quando queima a boca — se é tão necessário assim, eu mesmo te levo. Mas eu vou ficar te esperando, e você entra, e sai. E não vai largar essa merda de celular um minuto. Entendeu?

Dou um sorriso pela minha vitória e tomo um gole do chá, queimando a minha boca também – tudo o que a Antônia faz é servido imediatamente após ficar pronto, então se queimar com a comida dela é habitual já para mim.

Sigo André até o carro, apenas com a minha bolsa, o atestado enfiado de qualquer jeito lá dentro. A bolsinha da velha continua no meu casaco, e só agora eu me dou conta disso. Agora já foi, e a deixo no lugar, me sentindo melhor por tê-la ali de qualquer maneira. É algo que me liga a Gustavo, de certa forma... mais do que o celular, mais do que os ferimentos do meu dedo e das minhas costas.

André – como bom enfermeiro que é – percebeu que tinha algo de errado em mim, ao me ver sentada no sofá com seu pai ontem. Ele me puxou para o quarto e pediu para ver minhas costas, e sem saída, mostrei os ferimentos. Nunca o vi tão bravo na vida – ele imaginou que Gustavo fez alguma coisa. Mas sinceramente... o que ele poderia ter feito comigo para causar aquilo? Só se nós fôssemos praticantes de sadomasoquismo e essas coisas todas – o que obviamente não éramos. Nem transei com ele ainda... imagina esse tipo de coisa.

A Chance do TempoOnde histórias criam vida. Descubra agora